Reflexões sobre a água: modas, usos e costumes
Entre a Europa e a Fashion Rio, cronista pensa no
que leva o básico a se transformar em atitude
A primeira vez que reparei em turistas andando com garrafas de água na mão foi num verão em Veneza, há muitos e muitos anos. Os turistas eram quase sempre alemães, estavam quase sempre de shorts e camisetas minúsculos e eram, invariavelmente, barrados nas igrejas e nos restaurantes, onde se exigia — e ainda se exige — um mínimo de decoro. Os donos da pensão onde me hospedava, que vieram a se tornar bons amigos, suportavam, com a resignação da necessidade, os que viviam sob o seu teto; mas, na hora das refeições, me seqüestravam para a cozinha. Acho que ficavam perturbados com a idéia de deixar uma moça latina entre aqueles novos bárbaros.
Além das roupas inadequadas e das garrafas de água que eu não conseguia entender, os alemães usavam também uma sandália com meia que, apesar de esquisita, me parecia muito confortável. Rodei a cidade toda à procura da tal sandália, que, finalmente, achei numa sapataria perto da estação, bem longe do glamouroso comércio do centro. Pedi-a ao vendedor, que me trouxe a que estava ao lado — delicada, de salto, muito bonitinha. Não, não era aquela; era a do lado. Ah, sim, desculpe. E lá veio mais uma sandália refinada que, na vitrine, estava do outro lado da que eu queria.
— Não, não, o senhor não está entendendo. Quero aquela do meio, sem salto. A da sola de cortiça.
— Aquela?! Mas aquela não é para a senhora. Aquilo é coisa de alemão, não fica bem numa mulher.
Nunca foi tão difícil comprar um sapato! Tive que explicar que estava interessada não por motivos estéticos, mas porque me parecia confortável, e eu ainda tinha muito chão pela frente; disse que queria apenas experimentar, ver qual era a da tal sandália — que, por sinal, já naquele tempo remoto, era caríssima. O homem resistiu o quanto pode, mostrou mais sandálias italianas bonitas (e até confortáveis) para me fazer mudar de idéia, mas eu estava irredutível. No fim, quando entregou os pontos e trouxe a sandália que eu queria, fez questão de deixar claro que, se me arrependesse da compra, poderia voltar a qualquer momento para trocá-la por algo mais apropriado.
Não foi preciso. Fiquei apaixonada pelo meu primeiro par de Birkenstocks, que deixou os donos da pensão desconfiados de mim e, já aqui no Rio, horrorizou as minhas amigas, que não entendiam como alguém podia usar, por gosto, aquela coisa ortopédica — e, ainda por cima, com meia.
Depois de mais umas viagens, cheguei a ter uma pequena coleção delas — até que, um dia, viraram moda. Na época eu era uma criatura radical, que nunca tinha ido a um desfile e fazia questão absoluta de não usar nada, mas absolutamente nada, que estivesse na moda; o que, hoje percebo, não deixava de fazer de mim uma fashion victim como as outras, já que era a moda, afinal, que ditava o que eu não ia usar...
Esta, porém, é uma história do passado. Continuo fora de moda porque sou mesmo um caso perdido, mas atualmente cultivo o meu lado fashion com prazer. Gosto de ver como a moda interpreta e revela o seu tempo, e como o tempo expõe e desfaz a moda. Aquelas garrafas de água mineral, por exemplo, que eram tão ridículas quanto as Birkenstocks há 20 anos, estão cada vez mais próximas das passarelas. Em vários desfiles da Fashion Rio o público recebeu garrafinhas de água-de-coco em práticas bolsinhas a tiracolo. Daí à figuração com a Gisele é um pulo.
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Enquanto isso, na Europa, não são mais apenas os turistas alemães que carregam a sua água para cima e para baixo, causando estranheza nos demais. Na verdade, a impressão que se tem é que um dos acessórios mais chiques do verão lá de cima é a garrafa de água mineral. Todo mundo leva uma na mochila e bebe o tempo todo, como se a sede simplesmente não pudesse esperar a próxima parada. Já deixou de ser necessidade; virou atitude.
Mais fashion do que a onipresente garrafa d’água só as nossas boas e velhas Havaianas, de preferência com bandeirinha brasileira na tira. Já tinham me contado isso, mas eu, boba, achei que era exagero. Pois não é não. Não só as Havaianas legítimas estão por toda a parte, a módicos R$ 70, como, por quaisquer R$ 40, pode-se levar uma imitação autêntica, vinda da China ou — vejam só! — da Argentina. Essas cópias bisonhas atendem por diversos nomes, entre os quais o ótimo Da Baiana.
No mais, há uma tal profusão de verdes e amarelos por lá que, pela primeira vez, não senti nenhuma hesitação na hora de escolher as cores da minha sandália na Fashion Rio: fui direto ao hit parade europeu, marcando sola amarela e tiras verdes. Ficou o máximo!
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Como não vi o Ronaldinho com sua nova paixão, o ponto alto da Fashion Rio foi, para mim, o desfile da Lenny: elegante, caprichado, lindo de ver. E, o que é melhor: apresentando maiôs e roupas que podem ser usados por pessoas com mais de 15 anos — e mais de 35 quilos.
(O Globo, Segundo Caderno, 1.7.2004)