25.11.03



Que viagem...

A Laura me mandou este artigo que saiu em São Paulo. Não tinha visto. Achei curiosa a tese do autor; ainda não li o livro do Chico.

Como aprendi o húngaro

"Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira." Impossível eu não me fascinar por um livro que começa assim. Sempre fui dessa mesmo opinião. Mas, ao mesmo tempo, é difícil resistir à tentação - a de debochar dos estrangeiros. Até minha querida filha Maria de vez em quando pede para o pai gringo pronunciar a palavra "proseco" diante das suas amigas. Atendo o pedido quando estou de bom humor. E todas dão aquelas risadas desengonçadas das adolescentes, mesmo que não saibam o que significa esse vocábulo. É uma festa. Fico a admirar como um mero erro de pronúncia pode provocar tamanha alegria.

Quem diz que deve ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira é o José Costa, protagonista de Budapeste, o último romance de Chico Buarque. Não tenho a pretensão de resumir o seu enredo, que é um tanto manhoso e cheio de espelhos, embora o livro seja gostoso e fácil de ler.

Basta dizer, por ora, que Costa está empenhado em aprender o húngaro.

Não está muito claro por quê. Lá pelas tantas ele conta: "Pedi um chope no bar da esquina, vi uma agência de viagens logo em frente, larguei o chope, cruzei a rua e comprei duas passagens para Budapeste".

Costa se apaixona pela língua magiar, pela sua professora de húngaro Krista, e se entrega de corpo e alma ao aprendizado do exótico idioma. Como diz:

"Assim, depois de um mês em Budapeste, já me soava quase familiar a cadência das palavras húngaras, com a tônica sempre na primeira sílaba, mais ou menos como um francês de trás para diante."

Depois de muito estudo apaixonado, Costa, que era um ghost-writer brilhante no Brasil, se habilita "a retocar por conta própria o húngaro das maiores escritores da Hungria". Surge o Zsoze Kósta, a versão húngara do José Costa, e os dois passam a conviver de forma meio atabalhoada dentro da narrativa.

Zsoze acaba escrevendo até mesmo um livro aclamado de poesia na Hungria, como ghost-writer de um festejado poeta que anda sem inspiração.

A história é solta e divertida e se vale, bem mais do que Benjamin e Estorvo, do sutil e irresistível senso de humor do seu autor.

Pensava eu em tudo isso, enquanto lia Budapeste, deitado à noite na cama do meu quarto em Pinheiros, quando fui acometido de uma sensação esquisita. Eu conhecia José Costa de algum lugar. Ou seria o Zsose?

Parecia improvável. Afinal, ele é um personagem de ficção - e recém-lançado ainda por cima.

Mas, quanto mais lia sobre a sua volúpia pelas palavras húngaras, pela sua vontade de dizer kêrekport, kêrekpart, kerékpár, sobre o seu amor pelo aprendizado de um novo idioma que continha toda a história de um povo, toda uma maneira de ser, um ritmo e uma musicalidade, mais eu tinha certeza de que conhecia esse personagem. Não era possível.

Foi lá pela página 63 que me deu o estalo: Zsose Costa é Paulo Rónai! Corri até a estante de livros e procurei até achar o pequeno e maravilhoso livro de crônicas de Rónai, Como Aprendi o Português. Logo na orelha, de 1975, reli: "Paulo Rónai, húngaro de nascimento e brasileiro há meio século, é dessas personagens raras que, de quando em quando, surgem na literatura para não só pôr em contato duas tradições que antes mal se conheciam..."

Na primeira crônica da coletânea, Rónai conta como um húngaro que não conhecia o Brasil acabou se apaixonado pelo idioma do nosso País. Escreve:

"De todos os escritores húngaros que eu conhecia, Desidério Kosztolányi era o único que se aventurara a abordar o estudo do português. Certa vez falou-me nesta língua, que lhe parecia alegre e doce como um idioma de passarinhos. A mim, sob seu aspecto escrito, dava-me antes a impressão de um latim falado por gente que não tivesse dentes. Se os tivesse, como haveria perdido tantas consoantes. E olhava espantado para palavras como lua, dor, pessoa, veia, procurando apanhar o que nelas restava de palavras latinas, cheias e sonoras".

A parti daí, eu já não consegui mais ler Budapeste com os mesmos olhos.

Concluí que havia decifrado a obra do Chico. Ele está tentando criar uma musicalidade a partir das muitas vogais da língua portuguesa, pensei. Pode muito bem ser delírio meu, mas comecei a perceber uma escolha deliberada de termos repletos de vogais. Diz o Zsoze: "Guanabara, murmurei, goiabada, Pão de Açúcar".

Não sei se Chico se inspirou no Rónai, consciente ou inconscientemente. Mas, no fundo, pouco importa.

Ronái dá uma dica para entender a rica música do texto do Chico.

José Costa erra as consoantes ao aprender o húngaro. Aqui no Brasil, nós, os gringos, erramos as vogais. Proseco." (Matthew Shirts)

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