26.11.03



Curiouser and curiouser...

No dia 9 de outubro, meu colega e amigo Sergio Rodrigues publicou este lindo artigo no No Minimo. Só li agora*. Ele chegou à mesma conclusão do Shirts -- mas com algumas semanas de antecedência.

Confiram:
" “Naquela época eu ensinava latim e italiano num ginásio de Budapeste. Uma vez por semana freqüentava um café onde se reuniam meus amigos lingüistas. Um deles estudava o sogdiano, outro preparava um ensaio sobre os pronomes voguis, um terceiro acabara de publicar dois grossos volumes de contos tcheremissos. Só interessados em idiomas exóticos, tinham verdadeira paixão pelas línguas difíceis e desprezavam minhas modestas excursões no domínio neolatino.” Por trechos como esse é que se confirma o que todo mundo anda dizendo: é bom demais esse Chico Buarque, não?

Bem - não, nada disso. Quer dizer, o novo livro de Chico é ótimo, mas o trecho que abre este artigo não foi extraído dele e sim de um duplo de “Budapeste”, como Zsoze Kósta é duplo de José Costa. Um livro que, escrito a partir dos anos 40 e lançado em 1975, compartilha com o grande best-seller do momento dois traços fundamentais: a oscilação entre a capital húngara e o Rio de Janeiro (com a diferença de que parte daquela para chegar a este, enquanto o herói buarquiano faz o caminho inverso) e a coragem de mergulhar de cabeça nos abismos da língua, das línguas, da linguagem.

Até fazer essa descoberta eu nem pretendia escrever sobre “Budapeste”, apesar da sintonia de sua alma metalingüística com uma coluna como esta, dada a filosofices sobre o tema. Cheguei a achar, diante da acolhida entusiasmada que o livro de Chico teve na imprensa, que o pessoal já falara demais dele. Acreditava que nenhum texto em torno do texto interessaria mais ao leitor, a quem só caberia agora embarcar na primeira frase - “Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira” - e se deixar levar. Ou não. Pegar ou largar. Mas eu estava enganado.

Confesso que não sei bem o que fazer da minha descoberta. Sei, porém, o que não fazer. O tal duplo de “Budapeste” é uma coletânea de artigos chamada “Como aprendi o português e outras aventuras”, do erudito Paulo Rónai (Editora Globo). Nem ficção é, e se o início da coluna levou alguém a esperar uma denúncia de plágio ou influência excessiva, lamento. Não se trata de nada tão sensacional. Mesmo assim, as correspondências entre as duas obras são impressionantes.

De um lado, encontramos o brasileiro José Costa, que por acaso ou fastio começa a construir uma nova identidade - uma identidade húngara - no dia em que a música de um idioma incompreensível o subjuga e mesmeriza. “Sem a mínima noção do aspecto, da estrutura, do corpo mesmo das palavras, eu não tinha como saber onde cada palavra começava ou até onde ia. Era impossível destacar uma palavra da outra, seria como pretender cortar um rio a faca.”

Do outro lado, temos a presença comovente de um jovem húngaro, Paulo Rónai, e sua paixão também gratuita pelo português, numa Budapeste que estava a poucos anos de se tornar quintal da Alemanha nazista. “A mim, sob seu aspecto escrito, (o português) dava-me antes a impressão de um latim falado por crianças ou velhos, de qualquer maneira gente que não tivesse os dentes. Se os tivesse, como haveria perdido tantas consoantes?”

José, antes de virar húngaro, se espanta: “Cortei o som, me fixei nas legendas, e observando em letras pela primeira vez palavras húngaras, tive a impressão de ver seus esqueletos: ö az álom elötti talajon táncol”. Paulo, às vésperas de virar brasileiro, fica abismado: “E olhava espantado para palavras como lua, dor, pessoa, veia, procurando apanhar o que nelas restava das palavras latinas, cheias e sonoras”.

O que se descreve nos dois livros, a partir desse momento mágico em que novas palavras reinauguram o mundo, é a aventura da reinvenção da própria vida dos narradores. Uma, a de Paulo, aventura épica, no cenário da maior tragédia do século 20 e provavelmente de todos os tempos. A outra, a de Zsoze, aventura besta, circular, de significado fugidio, prenúncio de um século em que até as grandes tragédias prometem nos chegar esvaziadas de sentido.

Se percursos e estilos são diferentes, resta o bastante de solo comum para que o livro de Rónai nos ajude a entender “Budapeste”. Não, o romance de Chico Buarque não é uma ode à busca da palavra exata, como andam dizendo por aí (lugar-comum mais vazio que esse, só o espanto com a capacidade do autor de “reconstruir” uma cidade que nunca visitou, como se o livro tivesse alguma pretensão realista). O sortilégio da prosa diabolicamente bem urdida, ponto mais forte do Chico escritor, parece ter confundido o pessoal. Ode à busca da palavra exata é toda a obra do autor desde “A banda”. O que distingue “Budapeste” é quase o contrário, uma confissão de fragilidade do indivíduo falante - fragilidade tão grande que borra a própria idéia de autoria - diante da língua que ele fala.

Ou melhor: diante da língua que o fala. Chico e Rónai nos descortinam o encantamento com o fato óbvio - mas pouco considerado - de que as línguas nos falam tanto quanto são faladas por nós. (Sergio Rodrigues)

* Confesso: ando mesmo atrasada com as minhas leituras. Motivo? Leituras, leituras, leituras. Em outras plavras, numa outra língua, information overload.

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