28.11.03




De patinhos feios a objetos de desejo

Nos supermercados de Seul é comum ver os produtos mais triviais cuidadosamente embalados para presente: latas de óleo, pacotes de macarrão, açúcar, sabão em pó, biscoito. Um amigo explicou: é que os coreanos trocam tantos presentes entre si que o gesto passou a representar apenas isso, um gesto. Pouca gente tem bala na agulha para cumprir o ritual com objetos cobiçáveis; menos gente ainda tem tempo para trocar todos os presentes de que não gostou; e ninguém, absolutamente ninguém, tem espaço em casa para acumular tanta quinquilharia.

Faz sentido — mas, ainda assim, me pareceu bem frustrante. Adoro atum em conserva, por exemplo, mas acho que ficaria muito desapontada se ganhasse um presente todo bonitão e, na hora H, descobrisse que era uma lata de atum. E olhem que uma lata de atum tem mil e uma utilidades culinárias, ao contrário de tantas bobagens que a gente ganha apenas para passar adiante. Os coreanos têm, nota-se, mais lógica sentimental do que a gente.

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Lembrei dessa história semana passada, numa livraria. Quando eu era criança, os livros eram autênticos presentes coreanos. Eu adorava livro, vivia lendo, mas ficava indignada quando uma visita trazia livro de presente. Afinal, lá em casa, livros eram artigos de primeira necessidade, incluídos na dotação orçamentária. Presentes de verdade tinham que ser supérfluos ou, no mínimo, bonitos, luxuosos — e, naquela época, salvo raríssimas exceções, os livros que se faziam no Brasil eram uns monstrengos bem feinhos*.

Hoje, pelo contrário, é preciso procurar muito numa livraria para encontrar um presente coreano. Os livros brasileiros não podiam ser (ou estar?) mais atraentes; e não estou me referindo apenas aos de arte, tradicionalmente bem cuidados. Até as editoras universitárias estão fazendo um bonito. As capas são sedutoras, o papel é da melhor qualidade, a mancha gráfica é generosa. A indústria descobriu, enfim, que não basta um bom texto para seduzir o consumidor, e trouxe à tona o lado sensual dos livros. Bons de ver e de pegar na mão, de folhear e acariciar.

Vejam, por exemplo, “Na sala com Danuza.2”. Injustiça chamá-lo de “nova edição”. É um livro todo novo, não só pelos acréscimos e modificações do texto, como pelo projeto gráfico ma-ra-vi-lho-so da Pinky Wainer. Num mundo de celebridades efêmeras, nada como encontrar o artigo genuíno: Danuza Leão tem um senso de humor afiado, é inteligente e sabe tudo. O máximo.

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Quando vi “Passaporte”, de Fernando Bonassi, editado pela insupe'ravel Cosac & Naify, foi paixão à primeira vista. Igualzinho a um passaporte na cor, no tamanho e na textura, “Passaporte” é o livro de viagem que eu gostaria de ter escrito. Em cada página, há o retrato perfeito não de um lugar, mas de um estado de espírito local. O livro é uma coleção de pequenas fotos em palavras, instantâneos de grande precisão e densidade atômica.

Devo confessar que tenho um fraco pela Cosac & Naify, que faz os livros mais tentadores que conheço. Livros livros, de verdade, daqueles de ler, e não apenas de ver figurinhas. Embora, em alguns casos, aconteça uma feliz convergência, como na “História da arte italiana”, de Giulio Argan, puro deslumbramento. Ao contrário de “Passaporte”, tão pequetitinho, são três alentados volumes, num total de 1.400 páginas que deixam a gente sem saber o que fazer. Olha-se tudo primeiro, e depois se começa a leitura, ou começa-se a leitura e depois se descobrem as ilustrações, devagarinho, puxadas pelas palavras? Ó dúvida cruel! Como sou impetuosa, estou fazendo tudo ao mesmo tempo, lendo, olhando, indo e vindo entre os volumes. Taí. Se fosse pecado, eu estava frita.

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O melhor de tudo é que a Cosac & Naify não é uma exceção. Mesmo a Ediouro, que durante décadas fez livros visualmente indigestos até para as traças, está brilhando. Literalmente: “Egito: um olhar amoroso”, de Robert Solé, traz a lateral das páginas gloriosamente prateada. Não é só bonito; é também excelente leitura, apresentando um Egito personalíssimo, de A a Z, cheio de curiosidades e idiossincrasias.

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Para quem quer tempos mais modernos ou localidades mais próximas: “A capital da solidão”, de Roberto Pompeu de Toledo, em amorosa edição da Objetiva. Nunca pensei que alguém conseguisse escrever uma história de São Paulo ao mesmo tempo informativa e poética, mas Roberto Pompeu de Toledo conseguiu. O livro é rico e extraordinário, um prazer do começo ao fim.

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A gente sabe que o ano acabou quando os vizinhos contratam alpinistas para escalar as palmeiras do jardim e cobri-las de luzinhas.


(O Globo, Segundo Caderno, 27.11.2003)

* Update: Um leitor bibliófilo me escreveu muito sentido, mandando uma lista de lindas edições do passado. A lista não tem nada dos anos 60/70, décadas a que me refiro, mas fico pensando se não injusticei meus amigos livros ao chamá-los de monstrengos.

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