28.11.03



Diálogo

Do Silva Pinto, extraordinário fotógrafo angolando, respondendo a um (como sempre!) anônimo covarde que se assinou "Black and White" nos comentários do seu fotolog:
Black and White: "Não me digas que em Angola não há um garoto branco...um velho de olhar terno para fotografar? E já agora um pedido... não alteres muito os tons ao céu... com programas de fotografia... perde a graça... ao naturele... é bem mais bonito. Abraço!"

Silva Pinto: "Garoto branco, garoto negro, garotos “todos iguais, todos diferentes”, todos garotos, será que assim é, será que é assim que as coisas acontecem na minha realidade.

Bom, como tu deves saber eu vivo em Luanda – Angola, vivo em África onde a população negra é maioritária. Em Luanda, há garotos brancos sim, há meninos e meninas brancas, há meninos e meninas negras. Se me perguntares se vivem todos da mesma maneira, estou tentado a dizer-te, sem te mentir, que não, que a esmagadora maioria dos meninos negros da minha terra não vive da mesma maneira que a maioria dos meninos brancos.

Os meninos brancos de Luanda, são em regra, filhos de expatriados trabalhadores das petrolíferas, das ONG’s, das companhias estrangeiras a operar em Angola, do Corpo Diplomático acreditado em Angola, e de poucos cidadãos Europeus que por razões profissionais cá se fixaram ou por cá se deixaram ficar. Maioritariamente estrangeiros portanto, vivem nos luxuosos e caríssimos bairros residenciais de Luanda, em enormes casas cercadas de muros altos bordejados de arame farpado ou cacos de garrafa com guarda fardado à entrada, não têm falta de água nem de electricidade, frequentam as escolas privadas caras de Luanda, não andam a pé, deslocam-se de carro com motorista, não têm paludismo, têm piscina no jardim, não comem uma bucha sentados no chão, têm pai, têm mãe, têm cartão de vacinas, sabem onde nasceram, sabem o dia e a hora em que vieram a este mundo, têm brinquedos, têm sonhos de menino, não são surrados por dá cá aquela palha pelo 1º que aparece e tem necessidade de descarregar raivas antigas, dormem o sono tranquilo e fresco dos anjos velados por uma bábá de serviço (essa sim, quase sempre negra) que até fala a sua (deles) língua.

Fotografar estes meninos será sem dúvida tarefa interessante, será tb tarefa muito árdua. Imagina tu o que me fariam se me apanhassem empoleirado num escadote de camera apontada a fotografar as crianças loirinhas e lindas do Sr. Fulano de Tal, em amena brincadeira à volta de uma piscina, numa qualquer tarde quente? No mínimo seria acusado de qualquer coisa bizarra. Os meninos que eu posso fotografar, são os meninos que eu cruzo na rua diariamente, que me chamam Tio, que têm fome (alguns), que sorriem, que choram, que brincam, que não têm guardas nem bábás, que têm como piscina o charco no passeio feito pela última chuva ou pela conduta de água da EPAL que estoirou e nunca foi reparada, que não têm hora de regressar a casa, ou porque simplesmente não a têm, ou porque ninguém os espera para jantar.

Os velhos de olhar terno, esse já é outro assunto. A esperança de vida em Angola, como deves saber, é de tal forma das mais baixas do mundo que encontrar um velho já é difícil, então encontrar um com olhar terno, será direi eu, um acaso muito feliz. Sabes, Black and White, eu não exploro a miséria, seria até muito fácil para mim fazê-lo, nem a tristeza, eu não invento a dor nem o sofrimento, eu não fabrico poses nem sorrisos, eu não fabrico imagens chocantes pelo simples prazer de incomodar. Por uma questão de princípios e de respeito próprios, e pelos outros que fotografo, eu só capturo o que me toca, nada do que fotografo é falso ou artificial, tudo o que vês nas minhas fotos existe é palpável, é natural, é verificável.

Vem ver ou pergunta a quem já viu, como é que é um céu da minha terra, um pôr do sol da minha terra. Quem sabe eles se lembrem e te digam que é…SIMPLESMENTE MAGNÍFICO. Se quiseres, os ajustamentos (contraste & brilho) que faço às minhas fotos no computador são os mesmos, que há uns anos atrás se faziam no ampliador, quando se escolhiam os tempos de exposição, fabricavam máscaras para proteger zonas e queimar mais outras, se utilizavam determinados reveladores e emulsões para se obterem determinados resultados. Se já fizeste cópias de contacto, tiras de teste, escolheste filmes e papéis em função de efeitos que queres criar deves saber do que estou a falar. Os meus azuis são mesmo azuis, as minhas cores são mesmo cores. Não as altero, não as modifico, não as fabrico, estão aí para quem as quiser apanhar.

Agora, sejamos realistas, e deixemo-nos de falsos purismos. A fotografia é uma arte, é emoção, mas tb é técnica. Ou por acaso supões que os grandes fotógrafos, não usam filtros, não polarizam os céus, não ajustam contrastes? Se calhar eles não o fazem, mas têm quem faça por eles…

Valha-me Nossa Senhora dos Recados, que isto hoje, já vai longo.

Volta sempre."
É por gente assim que vale enfrentar os "engarrafamentos" do Fotolog, as centenas de adolescentes malcriados, as fotos que não sobem, os comentários que se perdem no ar, os spammers de guestbooks e todas as ciberpragas do mundo virtual.

O curioso nessa história é que a minha percepção do trabalho do Silva Pinto sempre foi o oposto da do tal Black and White; o que eu mais gosto nas suas fotos é que ele não banaliza a miséria. Percebe-se a miséria, é óbvio, porque ela está lá; mas o que ele retrata é outra coisa, é o cotidiano, são as pessoas, eventualmente alegres, nos seus afazeres e nos seus momentos de lazer.

Em suma, ele está mais para Cartier Bresson do que para Sebastião Salgado, se é que vocês me entendem.

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