Leitura obrigatória
Alberto Dines, como sempre, manda muito bem. Este artigo, início de uma série intitulada
A Hora da Verdade, devia ser leitura obrigatória em todas as escolas de jornalismo, redações e, sobretudo, diretorias de empresas jornalísticas. Ele põe o dedo na ferida mais funda quando fala sobre o efeito deletério das "consultorias especializadas" sobre a nossa imprensa. Como todo jornalista em atividade há algum tempo, eu também assisti ao desenrolar desta tragédia -- impotente sim, Betinho, mas calada não: o que eu chiei a respeito disso, sempre, o tempo todo, você nem imagina; ou, aliás, talvez até imagine sim, me conhecendo, como conhece, há tanto tempo. Mas quem ouve jornalista?!
O novo Monde e a crise da mídia brasileira
Alberto Dines
Pouco antes do fim do ano, foram demitidos mais de cem jornalistas nas redações do Dia e do Jornal do Brasil, no Rio. Meses antes, o trator passara impiedoso na redação do Globo e nos jornalões Folha e Estadão. Os leitores não foram avisados (a não ser nos sites da internet, inclusive este
Observatório).
Simultaneamente, ocorriam gigantescas degolas ou enxugamentos na indústria automobilística, nos transportes aéreos e nos serviços bancários, todos razoavelmente noticiados pela mídia, tanto a generalista como a especializada.
Isso significa que a sociedade brasileira está basicamente desinformada sobre o que ocorre dentro do sistema que lhe passa informações e juízos. Não sabe que este sistema está em crise. Ignora que o modelo está falido. Desconhece que os nomes dos figurões que constam do expediente ou cabeçalho falharam redondamente. Sobretudo, não percebe que está sendo ludibriada por aqueles que se assumem como guardiões de sua boa-fé. Tomam o seu dinheiro -- ou a sua confiança -- mas entregam-lhe um produto incompleto. Roto.
O leitor precisa saber que o jornal que tanto lhe agrada está sendo produzido por menos pessoas de modo que entenda eventuais falhas ou, se não houver falhas, perceba que a empresa estava sendo pessimamente gerida porque havia gente demais para produzir a mesma qualidade. Alguém estava gastando o seu dinheiro de forma errada. A isto chama-se prestar contas, ser transparente, responsável, digno de respeito.
Se a mídia esconde do seu público a crise num setor de tamanha importância, tudo o que contar sobre as aflições ou alívios de outros segmentos será precário e parcial. Se é otimista ou catastrofista no noticiário, se defende esta ou aquela posição política -- tudo precisa ser visto num cenário minimamente veraz no qual a própria mídia deve estar espelhada.
Isto posto, é imperioso examinar um caso particular: o do jornal O Dia, do Rio de Janeiro. É paradigmático. Quando ainda pertencia aos antigos proprietários (a família do ex-governador Chagas Freitas), a empresa era considerada bem administrada, sólida, embora o jornal fosse dirigido a um público menos qualificado. Não importa aqui a forma com que se deu a troca de acionistas, importa que os novos donos e seus executivos desenvolveram de forma notável a performance da empresa e do jornal.
Passou a ser considerado modelar pelos próprios pares. Menina dos olhos da Associação Nacional dos Jornais, galardoada e mimada, experimentou todos os modismos importados pela corporação patronal. E, principalmente, serviu de campo de prova para uma corja de aventureiros internacionais, auto-intitulados "consultores", que depois de encherem os bolsos com os polpudos honorários e usando O Dia como plataforma, abancaram-se na maioria das empresas jornalísticas de médio e grande porte, de ponta a ponta do país. Sem nunca ter pisado numa redação, redesenharam os jornais, mudaram os pressupostos clássicos do jornalismo brasileiro. Deram as costas aos compromissos de uma imprensa num país tão recentemente democratizado.
Os desastrosos anos 90 da mídia brasileira -- que continuam até hoje -- coincidem com esta incursão dos consultores da Universidade de Navarra (Espanha) e seus associados em Miami.
Os resultados estão aí: O Dia é uma sombra do que foi -- em circulação e em número de funcionários. E o resto da imprensa está de língua de fora, pedindo penico, enganando os leitores com um jornalismo cada vez mais cascateiro, leviano, diversionista e irresponsável.
E os "consultores" com seus prepostos continuam engabelando um patronato desnorteado e descabelado. Pior: agora engabelam diretamente a opinião pública através de um oráculo semanal na página dois do Estadão e menos freqüentemente na página de opinião do Globo. Onde a crise da nossa imprensa, obviamente, não existe.
Essa gente tirou o emprego de centenas de profissionais brasileiros de todas as idades, jogou na rua da amargura jornalistas experientes que cometeram o pecado de calar-se quando os empresários embarcaram nos estapafúrdios seminários inovadores e na doidice das reengenharias, consultorias, reformas e redesenhos.
Le Monde inova: sem crises
E aqui entra o francês Le Monde, que na última segunda-feira, 14 de janeiro, estreou nova fase com algumas inovações visuais e, principalmente, muitos avanços conceituais.
A Europa atravessa seriíssima crise econômica com a locomotiva alemã batendo pino. A mídia vai atrás: o grupo germânico Leo Kirch, um dos maiores impérios mediáticos europeus, está à beira da falência. Os atentados terroristas nos EUA e os seus desdobramentos na Ásia Central e Oriente Médio obrigaram as empresas a ampliar os investimentos não apenas em coberturas longas em paragens distantes, mas também em novas tecnologias e equipamento.
Mas os resultados do Monde têm sido excepcionais: há sete anos, estava à beira da insolvência. No ano 2000 sua circulação subiu de 330 mil exemplares para 395 mil, com lucro de quase 30 milhões de dólares. Depois do 11 de setembro, ganhou mais 10 mil leitores fiéis e pretende conquistar outros 10 mil graças ao seu padrão de equilíbrio e isenção num momento de tantas paixões e desvario político.
A nova fase não começou com o redesenho, ao contrário, o redesenho é conseqüência natural de um esforço concentrado e persistente que começou há tempos. Também não será a adoção de um manual de estilo que melhorará a circulação do jornal (como pretende a narcisista Folha sempre querendo colocar-se como epicentro do mundo).
Na contramão do mundo, o Monde está mudando e melhorando porque ninguém apelou para malabarismos de consultorias malucas. É a "prata da casa" que está dando alento ao jornal. Em época de mudança, os jornais mais do que nunca precisam ser confiáveis, passar a imagem de honradez e decência. E sobretudo sabedoria. Em vez de degola, o Monde aposta em qualidade.
É preciso não esquecer que os jornalistas do Monde também são seus principais acionistas e que a holding a ser criada vai captar na Bolsa de Valores de Paris cerca de US$ 80 milhões.
A aprovação da emenda ao artigo 222 da nossa Constituição democratizou o capital das nossas empresas jornalísticas e também permite que os jornalistas brasileiros sejam acionistas e que suas ações sejam negociadas no mercado de capitais. Mas a nenhum de nossos geniais empresários jornalísticos, seus financistas ou consultores, ocorreu a idéia de, em vez de emascular as redações com as matanças periódicas, convocar os profissionais para, juntos, superarem as dificuldades.
Todas as informações sobre a situação e projetos do jornal francês foram publicadas no próprio. Le Monde jamais escondeu suas crises e seus números. Por isso é confiável.
(continua)