10.3.11

Lisbon revisited




Uma vez, eu estava na Avenida da Liberdade e queria ir às Amoreiras. Perguntei a uma senhora como fazia para chegar até lá.

-- Está a ver aquele autocarro? – perguntou-me ela. – Pois não é aquele, é o outro.

Uma vez, ainda nos tempos da Varig, um amigo embarcou em Lisboa. No compartimento das malas, havia uma, muito mal ajeitada, em que ele precisaria mexer para encaixar o que trazia.

-- Aquela mala é sua? – perguntou a um passageiro já sentado.

-- Não -- respondeu o passageiro. – É de um primo que ma emprestou.

Uma vez, outro amigo chegou a Sintra, ao Palácio dos Sete Ais, um dos hotéis mais lindos do mundo, e perguntou ao carregador  se era verdade que os quartos eram mesmo os maiores e mais confortáveis de Portugal.

-- Sim, é verdade -- confirmou o carregador, emendando rápido: -- Mas não o vosso.

Uma vez, este mesmo amigo, arquiteto, foi ter com Alvaro Siza, o seu grande colega, numa construção no Bairro Alto. Depois de conversarem e percorrerem a obra, meu amigo perguntou como fazia para ir a determinado endereço.

-- Ah, é muito fácil, -- respondeu o Siza. – Desce esta rua mesmo em que estamos e entra na segunda à direita. Ali, depois de andar uns duzentos metros, vai encontrar um palacete manuelino extraordinário, de proporções perfeitas, com uma das mais ricas fachadas de Lisboa, janelas decoradas com romãs e uns caracóis entalhados na porta, em pedra, um conjunto de beleza excepcional. Não lhe faça caso...

Uma vez, no Hotel Tivoli, chamei a camareira e pedi mais travesseiros.

-- Mas quer travesseiros ou almofadas?

-- Qual é a diferença?

-- As almofadas são menores, já os travesseiros são maiorzinhos.

-- Então me traga travesseiros.

-- Pois, mas travesseiros não os temos...

Uma vez, chegando atrasada para um encontro com amigos no mesmo Tivoli, perguntei se havia algum banheiro no térreo, para não ter que subir ao quarto.

-- Sim -- respondeu o senhor da recepção. – Desça este lance de escadas.

Desci, e de fato lá estavam os banheiros... fechados! Subi de novo as escadas e voltei à recepção.

-- Os banheiros estão em obras.

-- Sim, estão – confirmou o senhor da recepção. – Não podem ser usados.

* * *

Indo para Lisboa na quarta-feira passada eu pensava nessas histórias e ria sozinha. Portugal é dos meus países favoritos, certamente aquele pelo qual tenho maior carinho, e parte deste gosto vem, justamente, das diferenças com que usamos a mesma língua e das voltas distintas do que, à falta de melhor definição, considero nossos sistemas operacionais – o conjunto de lógica e interpretação que faz com quem nem sempre a gente consiga, de primeira, a resposta à pergunta que fez. O que não significa que as respostas estejam erradas, mas sim que as perguntas não foram formuladas de acordo com o ambiente em que se inserem. Ninguém precisa estudar computação para perceber isso, pois não?

* * *

Lisboa é a cidade encantadora de sempre, ainda que um bocado fria. Passei cinco dias me mortificando pela total falta de habilidade em lidar com invernos. Em janeiro fui para Las Vegas, onde os termômetros marcavam cinco graus, e nem tirei da mala o casacão que impediu que eu morresse de frio em Berlim há alguns anos: passei todo o tempo da CES usando uma jaqueta de couro curta, com que tirei de letra o frio do deserto.

Informada pela meteorologia que a temperatura em Lisboa andava pelos 11 graus, deixei o casacão no Rio; e quem disse que a jaqueta deu conta do recado? Não há índice de umidade relativa do ar que justifique, na minha cabeça, porque sinto mais frio com 11 graus do que com cinco. O que eu sei é que, daqui em diante, só viajo para o Hemisfério Norte durante o inverno com o raio do casacão na mala. Ocupa um espaço danado, dá aflição só de pegar aqui em casa mas, se for preciso, compro uma passagem só para ele, como fazem alguns violoncelistas com seus instrumentos raros.

* * *

Em Lisboa me perguntaram se eu não estava horrorizada com os efeitos da crise. Para dizer a verdade, se eu não soubesse como vai a economia, era capaz de nem ter percebido nada. Há menos carros nas ruas, muitos imóveis à venda e as lojas estão relativamente vazias, mas nada que chame a atenção, mesmo porque os restaurantes continuam cheios e, apesar do frio, a noite do Bairro Alto é de fazer inveja a qualquer Baixo Gávea carioca: centenas de pessoas nas ruas, em sua maioria jovens, bebendo e conversando madrugada afora, em perfeita segurança.

Ouvi portugueses reclamando dos preços dos restaurantes, e achei graça. Em Lisboa come-se infinitamente melhor do que no Rio por uma fração do preço que se paga aqui. Na verdade, na comparação, tudo está mais barato em Portugal – ou em qualquer outra parte do mundo. Crise mesmo enfrenta o consumidor brasileiro, que mora no país mais caro do planeta.

* * *

Gosto do jeito lisboeta de viver e do ritmo da cidade. As pessoas são discretas, chiques e, quando bem educadas, extremamente bem educadas. O comércio é cosmopolita, e a decoração das lojas e dos espaços públicos é elegante e acolhedora. Apesar de todas as mudanças -- e elas foram muitas desde que fui a Portugal pela primeira vez, em meados dos anos 80 -- a cidade continua sendo, em essência, a velha Lisboa que conhecemos, o porto seguro dos brasileiros que chegam a uma Europa onde se fala português. 

O luxo dos luxos, o luxo luso. 


(O Globo, Segundo Caderno, 10.3.2011)

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