15.3.10

Vejam do que escapamos...



Graças a uns releases sobre a tecnologia da Copa, embarquei numa espécie de túnel do tempo; mas, como quem percebeu quem leu esta coluna na outra semana, não fui em direção ao futuro, como querem os anunciantes que vão vender seu peixe ao longo do magno evento, e sim em direção ao passado.

A razão tem emoções de que o coração nem desconfia.

Naquela Copa de 50, eu ainda não era sequer um projeto de gente – meus pais só se conheceriam dois anos depois – mas a nostalgia não é sentimento conectado à lógica ou a cronogramas. Ando, portanto, às voltas com um mundo que mal vivi, em que as geladeiras eram importadas e os ventiladores um perigo para as crianças, com suas pás de metal desprotegidas.

Nesse mundo comia-se manteiga sem culpa no café da manhã, almoçava-se em casa, jantava-se lautamente e ninguém, tirando talvez os profissionais da saúde, tinha ouvido falar em caloria. Fotógrafos ganhavam a vida tirando 3 x 4 na praça ou surpreendendo casais e famílias que passeavam na rua. Esses instantâneos ficavam prontos rapidinho, em menos de uma semana.

As contas, imaginem, eram pagas em dinheiro vivo: não existiam cartões de crédito, e o sistema de cheques, antes da informatização bancária, era um tanto precário. O correio trazia cartas e telegramas. As cartas aéreas eram escritas em papel fino, para não ficarem pesadas e, por conseguinte, caras. Os comunicados fúnebres chegavam em envelopes com tarjas pretas, que lhes davam gravidade e os destacavam do resto da correspondência. Ainda peguei esses envelopes quando criança, e morria de medo deles.

A televisão era um aparelho de luxo, que apresentava programação local por algumas horas – e, mesmo assim, em pouquíssimos estados. Para o grande público, as notícias vinham mesmo pelo rádio e pelos jornais, que traziam informações de todo o tipo, de grandes manchetes a resultados de concursos públicos. As figurinhas do noticiário garantiam a circulação das revistas semanais e a popularidade dos cine jornais, projetados nas sessões de cinema antes dos longa-metragens. As mães guardavam revistas para os trabalhos escolares dos filhos e, em toda casa com um mínimo de recursos, as coleções de livros de referência para jovens tinham destaque nas estantes.

Havia, aliás, ótimo mercado para enciclopédias, vendidas de porta em porta, em suaves prestações mensais. E vendiam-se coisas de porta em porta! Não havia grades nos edifícios, nem porteiro eletrônico. Alguns edifícios não tinham nem porteiro.

A palavra “tecnologia”, apesar de inventada em 1829, não fazia parte do vocabulário geral, mas já punha as manguinhas de fora. Uma foto da época mostra a imagem que a Rand Corporation fazia, então, dos dias atuais (nunca entendi para que serviria aquela roda): o monstrengo que vocês vêem não era um controle de submarino, mas um computador doméstico, ou melhor, o que se imaginava que poderia vir a ser um computador doméstico, no distante ano de 2004. Ao apresentar a sua visão, a Rand observava (como se fosse necessário!) que “a sofisticação e o custo dos componentes não permitirão a sua adoção pelos lares comuns”. Ainda bem!

Essa foto, pelo ridículo, tornou-se um dos clássicos da informática. Mesmo assim, apontava na direção certa. O Univac, primeiro computador comercial, fora lançado apenas três anos antes: pesava 13 toneladas, tinha 5.200 válvulas e consumia mais energia elétrica do que um quarteirão bem iluminado. Que alguém sequer imaginasse algo semelhante funcionando em casa já era um prodígio.

A maior revolução jamais vivida pela humanidade estava em curso. Nada seria como antes, o que não é dizer pouco, ainda que a frase tenha se tornado banal: apenas nos dois séculos precedentes, com a Revolução Industrial, o mundo passara por mais transformações do que em todos os milhares de anos anteriores de História registrada.

Já sabíamos que tudo pode mudar num piscar de olhos; só não sabíamos, ainda, que piscávamos tão depressa.


(O Globo, Revista Digital, 15.3.2010)

Update: Pois não é que a foto é um hoax?! Para meu consolo, Larry Elison e Mitch Kapor também já caíram nessa; para meu desconsolo, já foi há alguns anos... Por outro lado, novamente para meu consolo, isso vai dar mais uma crônica!

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