25.3.10

Fazendo as contas




A fatura veio assim: “Cinco redondas com estampa de oncinha, cinco compridas com estampa de girafa, cinco irregulares com estampa de zebra, dez de vidro azuis e douradas, seis com estampa de tigre, três art-nouveau grandes com desenho de pavão, seis micro gatos de porcelana dourada, dois peixes vintage em cloisonné.” Num bilhete anexo, a vendedora sugeria que eu desse uma olhada nos pingentes novos, feitos de um material furta-cor que muda conforme a refração da luz.

“Agradeço a indicação, -- respondi. – Os pingentes são mesmo interessantes, mas preciso confessar que não tenho idéia do que fazer com eles. Aliás, preciso confessar que também não tenho muita idéia do que fazer com o resto, já que só descobri o mundo das contas há uma semana. Tudo o que sei, por enquanto, é que almejo a simplicidade.”

Depois de mandar o email é que percebi a incongruência entre a cabeça Bauhaus e o coração rococó, mas se achou esquisito alguém almejar a simplicidade através de estampas de oncinha, gatos de porcelana dourados e pavões art-nouveau, a minha correspondente não disse. Deve ter visto coisas piores, com certeza, porque foi psicóloga.

Um dia, a filha propôs começarem a vender juntas umas continhas pelo eBay; mais tarde foi embora para a universidade e largou o negócio no colo da mãe. Já vi muita gente fazer isso com gato e cachorro, mas com lojinha virtual foi a primeira vez. Joyce, que no ínterim se aposentou e toca o site com galhardia, gosta das contas, mas se arrepende de ter largado a profissão.

“As contas são um mundo fascinante, mas nunca deixe de escrever por causa delas”, recomendou. Mesmo que eu quisesse, ia ser difícil. As encomendas demoram tanto a chegar que, com sorte, eu talvez consiga montar uma pulseirinha antes do Natal.

* * *

Liguei para a Bia:

-- Arranjei um hobby!

-- Ahn?

-- Bijuteria. Vou fazer umas coisinhas com contas.

-- Ah, que bom. Você não tem mesmo nada para fazer, vai ser ótimo, vai preencher todas as tuas horas vagas...

Notei uma certa ironia. Não era o que eu queria ouvir. Principiantes precisam de estímulo. Liguei para a Laura:

-- Arranjei um hobby!

-- O que é?

-- Bijuteria. Vou fazer umas coisinhas com contas.

-- Que ótimo! Vai ser muito bom, trabalhos manuais são uma grande distração. E isso a gente faz em frente à televisão, conversando... ah, é uma delícia!

-- Estou me sentindo culpada, estou gastando pilhas de dinheiro numa coisa que nem sei direito o que é.

-- Se gastasse em terapia era muito mais caro. Está se divertindo?

-- Muito!

-- Então.

Mamãe, que estava na área, entrou na linha:

-- É melhor do que título de capitalização. E você tem netas. Se um dia enjoar das contas, dá para as meninas que elas vão ficar felizes.

Nada como um pé no chão.

* * *

O que eu disse para a Laura é a mais absoluta verdade: estou me divertindo horrores – e isso que as continhas nem chegaram. Descobri um mundo novo milenar, um autentico universo em expansão ao qual, por incrível que pareça, nunca tinha prestado atenção. Adoro enfeites, sobretudo anéis e colares, mas nunca parei para pensar como são feitos ou onde nascem. Também nunca parei para pensar que, por trás do mais humilde colarzinho, há milênios de História: uma das primeiras coisas que o ser humano fez quando desceu da árvore foi juntar umas pedrinhas bonitas e pendurar no pescoço. Daí para espetar cristais Swarowski em havaianas e capas de celular foi um pulo.

A quantidade de materiais, formas, cores e tipos de contas que existe é um espanto. Sei que estou constatando o óbvio para praticamente todo mundo, mas tenho esse jeito esquisito de, vira e mexe, descobrir uma pólvora qualquer e me encher de espanto.

* * *

Nunca entendi a ingenuidade dos índios ou das tribos africanas que negociavam tesouros verdadeiros com os conquistadores ocidentais a troco de contas e miçangas, mas hoje isso já me parece perfeitamente lógico. O que determina o valor dos tesouros é a sua raridade e o apreço que a comunidade lhes tem. Especiarias, pedras, ouro e prata eram conhecidos e comuns para as tribos; vidro não. É compreensível que trocassem o que tinham pelo que não tinham. E, a longuíssimo prazo, nem foi mau negócio – hoje algumas daquelas belas contas venezianas que atravessaram o oceano há quinhentos anos valem fortunas.

“Que pretensão a nossa de fazer pouco dos índios e dos africanos que trocavam contas por ouro!” escrevi para a Joyce. “Não é exatamente isso que estou fazendo? Não é exatamente isso que milhares de pessoas continuam fazendo, todos os dias?”

* * *

O mundo das contas tem mais acessórios, pecinhas, ferramentas e tipos de fios e correntes do que eu jamais teria pensado. Tem também uma quantidade espantosa de publicações. Mandei vir meia dúzia de livros da Amazon e, no momento, torço para que cheguem antes das contas, até para saber o que fazer com elas.

Mas, mesmo sem os livros, e mesmo sem as benditas continhas, passei a perceber as vitrines com outros olhos. Enquanto futuco a internet e cato uma conta no Nepal e outra na Itália, certas sequencias se formam na minha imaginação; se vou conseguir executá-las são outros quinhentos. Continuo achando lindo tudo de que já gostava, mas noto que talvez “escrevesse” aquilo de outra forma.

Afinal, cada um tem seu jeito de contar uma história.

(O Globo, Segundo Caderno, 25.3.2010)

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