27.3.08


Epidemia de má-fé

Culpar a população é covardia: a
dengue é o caos da saúde pública



Para quem foi criança no Rio nos anos 60, a dengue é uma pestilência incompreensível. Naquela época, o pior do mosquito nem era a picada, era o zumbido. Por causa disso, acendíamos uma espiral perto da cama. Fazia fumaça e o cheiro era forte, mas ainda era preferível dormir com aquilo do que passar a noite em claro com a cantoria dos insetos. Na escola nos falavam da febre amarela e da campanha heróica de Oswaldo Cruz, mas a história fazia parte de um passado muito remoto. Ninguém conseguia imaginar uma cidade em pé de guerra por causa de mosquito.

O ano 2000 representava um ponto igualmente distante, só que em direção oposta. "Blade runner", que mudaria para sempre a nossa concepção do futuro, só seria lançado em 1982; até lá, iriamos para o trabalho em veículos voadores, verduras viriam em pílulas e todo o serviço doméstico seria feito por robôs. Não passava pela cabeça de ninguém que em 2008 o Rio estaria novamente entregue aos mosquitos. Aliás, não passava pela cabeça de ninguém que uma cidade tão maravilhosa pudesse sofrer tamanho retrocesso. Quando a escola era risonha e franca, a única coisa que andava para trás era caranguejo.

Hoje, além de morrer de dengue, o carioca ainda tem que ouvir do coronel da Defesa Civil que a culpa é da população. Ora, se há um caso em que a população não tem culpa é na atual epidemia! A população, que se deu conta da extensão do desastre muito antes das “autoridades”, tem feito o que está a seu alcance. Tem denunciado potenciais focos de mosquitos, tem tentado ligar para o disque-dengue, tem mandado cartas e fotos para os jornais, tem se queixado no rádio e na televisão. O que mais se pode pedir de uma população indefesa e desorientada?

Enquanto isso, o secretário municipal de Saúde, que sempre pareceu pessoa séria, afirma que a situação é “inesperada”. Perdão, mas onde é que ele mora?! Como pode ser “inesperada” uma epidemia de dengue numa cidade que convive com a doença há mais de quinze anos?! Será que alguma coisa melhorou na saúde pública do Rio nos últimos quinze anos sem que a gente percebesse?!

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Por outro lado, é ridículo que a prevenção da dengue seja atribuição exclusivamente municipal. Mosquito não respeita fronteira política, nem é capaz de perceber que o prefeito está maluco. Saúde é coisa séria demais para ficar nas mãos de oportunistas menores; e é séria demais, também, para ficar nas mãos de oportunistas maiores. O combate aos mosquitos, que é trabalho silencioso, sem obras de inauguração e sem ocasiões para o exercício da cretinice verbal, deveria ser obrigação de todos os governantes, em conjunto e sem exceção. Assim, vigiando-se mutuamente, eles talvez fizessem mais do que trocar acusações.

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Agora imaginem só o que seria do Brasil se, há cem anos, Oswaldo Cruz tivesse se orientado por pesquisas de opinião pública ou pelo populismo de hoje! E imaginem, se conseguirem, o que será do Brasil daqui a cem anos... Mas nisso, pelo menos, demos sorte: nenhum de nós estará vivo para ver.

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Roald Dahl foi um dos escritores mais criativos e originais do século passado. Não tem leitores; tem fãs ardorosos que lêem e relêem os seus livros, participam de comunidades e fóruns de discussão e o mantém vivíssimo nas livrarias e na internet, embora tenha falecido em 1990, aos 74 anos. Sua popularidade nos países de língua inglesa é tão grande que, em 13 de setembro, data do seu aniversário, o Google enfeita o logotipo em sua homenagem.

Dahl escreveu algumas histórias para crianças que foram parar no cinema e que todos conhecem, mesmo que não saibam que são dele (como “Os gremlins” e “A fantástica fábrica de chocolate”), e alguns contos arrepiantes para adultos que, infelizmente, permanecem desconhecidos no Brasil. Alguns dos seus livros foram lançados por aqui ao longo do tempo, mas acabaram tropeçando ou em traduções capengas ou em má distribuição, quando não nas duas pragas simultaneamente.

No final do ano passado, no entanto, chegou às livrarias uma ótima tradução de “Kiss Kiss”, cult que, desde o seu lançamento em 1959, faz a alegria dos “dahlmaníacos”. Chama-se “Beijo,”, tem onze histórias em 301 páginas, foi traduzido por José Garcez Ghirardi e publicado pela Barracuda. Perdi a conta do número de vezes em que li este livro no original, mas apesar disso tive o maior prazer de reencontrá-lo em português.

É muito difícil falar dos contos sem entregar o jogo. Digo apenas que são curiosamente bizarros e muito divertidos, pequenas jóias em forma de montanha-russa. Vocês vão ver: é quase impossível terminá-los sem vertigem, e sem um frio aflitivo na barriga.


(O Globo, Segundo Caderno, 27.3.2008)

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