26.12.07


Sonhos nas revistas,
pesadelos nas ruas

Cronista faz rápido balanço de 2007
e pede menos joelhaços para 2008



Parece que foi há anos – muitos anos, quase uma outra encarnação, quando eu nem reparava que tinha joelho e corria despreocupada por aí, ignorante do milagre maravilhoso que é andar, só e simplesmente andar: pôr um pé na frente do outro e, repetindo sem pensar este movimento, percorrer todas as distâncias. Na verdade foi em setembro, outro dia pelos meus parâmetros antigos, e eu estava em Londres, na Marks & Spencer, percorrendo as suas intermináveis galerias (se é que é assim que se chama aquele espaço que se forma entre as prateleiras de roupas), quando um casal começou a conversar em húngaro perto de mim. Húngaro, vocês sabem, é o idioma dos meus pais, língua que, desde criança, sempre considerei uma espécie de código secreto dos Rónai; de modo que basta alguém falar húngaro perto de mim para que eu me ponha em alerta. O diálogo, travado por trás de uma fileira de vestidinhos bem bonitos, era banal: um homem e uma mulher discutindo a mercadoria de uma loja no estrangeiro.

-- Mas é incrível, -- dizia o homem. – Essa loja é tão famosa, e aqui não tem nada! Qualquer roupa lá em casa é mais emocionante.

Nada?! Na Marks & Spencer?! Pois o estabelecimento em questão é, pelos meus parâmetros, o empório que tem tudo, sobretudo coisas dificílimas de encontrar, como saias compridas quando minissaias estão na moda, ou calças de cintura normal quando o que se usa são cinturas vertiginosamente altas ou baixas. O meu quase-conterrâneo tinha razão, contudo, ao observar que qualquer coisa em Budapeste (ou no Rio, ou em Istambul, ou em praticamente qualquer lugar do mundo) é mais emocionante do que o que se encontra lá. E este conceito, o das “roupas emocionantes”, ficou martelando na minha cabeça.

* * *

A Marks & Spencer é a versão capitalista do que seria, imagino, uma loja chinesa nos tempos do Mao. Tudo igual, mas, viva o mercado, de tudo muito, e em todos os tamanhos e feitios. A mesma blusa é vendida em versões específicas para altas e baixas, subdivididas em tamanhos para gordas e magras; a mesma saia é vendida em todas essas opções, mais variantes de comprimento, ou seja, acima dos joelhos, abaixo dos joelhos e no meio da canela. Até os sapatos vêm com salto alto, médio ou sem salto, para pés largos, finos ou médios. Há algumas variações de cores e o corte é geralmente ótimo; vossa cronista, definitivamente baixinha, mais ou menos gordinha, incapaz de comprar um jeans que não precise de mil ajustes na sua cidade natal, encontra, na Marks & Spencer, excelentes jeans que lhe caem como se tivessem sido feitos sob medida. E que, aleluia, duram muitos e muitos anos, porque Londres, afinal, não fica propriamente na esquina.

* * *

A maioria das pessoas que fazia compras estava, como eu, vestida de Marks & Spencer ou, pelo menos, de roupas com o jeito da loja: não exatamente na moda, certamente sem emoção, mas muito corretamente, ou seja, do melhor jeito que uns 80% dos seres humanos saídos da infância podem aspirar a se vestir na tarde corriqueira de um dia trivial. Esse conceito, contudo, está longe do universal: basta ver a quantidade de pessoas menos do que perfeitas e mais do que jovens que se ajeitam, como podem, em “roupas emocionantes”, freqüentemente à luz implacável do meio-dia.

Numa “esquina” entre duas prateleiras avistei, afinal, meu casal de húngaros. Cerca de 40 anos, nem altos nem baixos, ela bonita e perfeitamente normal, vale dizer cheinha pelos padrões anoréxicos da moda. Ficaria linda em qualquer daqueles vestidos sem emoção, mas certamente over, se não ridícula, nos balonées ultra emocionantes das vitrines das lojas chiques.

* * *

Por que me lembrei disso agora? Para dizer a verdade, não sei – mas suponho que tenha a ver com as revistas de moda, minhas companheiras deliciosas de estaleiro, cujas páginas vibram com a emoção de roupas inatingíveis vestidas por meninas que não existem. Em outras palavras, com a diferença entre sonho e realidade, e com a melancólica constatação do abismo entre os dois: afinal, quem se interessaria por revistas cheias de senhoras comuns, de meia-idade, desfilando roupas sensatas?! Seria um tédio inenarrável. Por outro lado, certas modas fariam bem em não sair do terreno dos sonhos, que tão bem lhes serve, em vez de virar pesadelos nas ruas.

* * *

Para mim, 2007 foi um ano e tanto; pesados os prós e os contras, um ano muito bom. Trabalhei, li, mudei de computador, viajei, fiz planos, lindos celulares passaram pelas minhas mãos, tive dissabores, entrei horrivelmente no vermelho, saí do outro lado e fui premiada com o Irineu, o gatinho abandonado que hoje é uma das alegrias quadrúpedes da casa. Sim, é verdade, fui atropelada em outubro e só agora, mais de dois meses depois, começo a me virar com as muletas. Em compensação, contei com o carinho dos leitores, com o apoio precioso dos meus amigos de coração e, acima de tudo, com a benção de ter minha Mãe a meu lado durante todo esse tempo. Portanto, se 2008 vier igual, vem de ótimo tamanho – embora eu agradeça desde já ao Todo Poderoso se, ao longo dos próximos 371 dias, Ele der um jeitinho de me poupar de joelhaços.

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Feliz Ano Novo!


(O Globo, Segundo Caderno, 27.12.2007)

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