Felicidade sob medida
Dá para imaginar que um romance alemão, baseado na vida e no trabalho de dois cientistas do Iluminismo, seja muito divertido? Notem que não estou usando “interessante”, “irresistível” ou qualquer outro adjetivo que, dependendo do leitor, pode se aplicar tanto a um livro de culinária quanto a um tratado de física; a palavra é “divertido”, mesmo, que o Aurélio define como algo “recreativo e alegre”.
Pois “A medida do Mundo”, de Daniel Kehlmann (Companhia das Letras, 269 páginas), é um livro maravilhosamente recreativo, e muitas vezes alegre, ainda que temperado com doses de crueldade e melancolia. A partir de um encontro entre Carl Friederich Gauss e Alexander Von Humboldt, em 1828, Kehlmann fala, alternadamente, de um e de outro -- do matemático genial que descobriu a curvatura do espaço sem praticamente deixar sua cidade, e do aristocrata que se empenhou na maior viagem de exploração científica até então realizada; embora ao fim, como filosofa Humboldt ao imaginar Gauss grudado ao telescópio, seja difícil dizer qual dos dois viajou para longe, e qual ficou sempre em casa.
Os dois estão entre os maiores nomes do seu tempo. Parte da graça do livro de Kehlmann é tratar esses monumentos da ciência como seres humanos: formidáveis, sim, mas a um passo da maluquice, tantas e tais suas esquisitices. Humboldt, obcecado com a precisão, medindo e estudando tudo ao seu redor, usa o próprio corpo para toda a sorte de experimentos perigosos; Gauss, uma espécie de Mozart da matemática, vive irritado por ter nascido na época errada – com muitas vantagens em relação ao passado, com certeza, mas com um enorme handicap em relação ao futuro. Para Humboldt, o conhecimento vem através do estudo, da observação, do sacrifício e da concentração. Para Gauss, tudo é tão óbvio, e vem tão naturalmente, que ele sequer se dá ao trabalho de comunicar aos outros suas descobertas.
“A medida do mundo” é tão envolvente quanto um passeio com um amigo espirituoso e cheio de histórias para contar. Não é o presente ideal para quem acha que ler é como andar na esteira, mas é uma felicidade sob medida para quem busca vida inteligente.
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“A Marcha”, de E.L. Doctorow (Record, 415 páginas), é outro livro que mistura, com galhardia, ficção e realidade – mas isso, para quem já conhece o autor, não é novidade. Para mim, a novidade foi encontrar um Doctorow que me cativasse quase tanto quanto o clássico “Ragtime”: por algum motivo, nenhum dos seus livros posteriores chegou a me despertar entusiamo. Como “Ragtime”, “A marcha” mistura gente que existiu com gente que poderia ter existido; todos, dessa vez, embrulhados no avanço das tropas da União sobre os estados confederados. A guerra, em todo o seu horror e insensatez, é a personagem principal dessa obra-prima sem protagonistas.
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Já uma outra guerra, em outro continente, foi o motor para os acontecimentos descritos por um oficial irlandês chamado Thomas O’Neill, que, em 1808, acompanhou, mais ou menos de perto, a fuga da família real. Seu relato compõe, com um ótimo ensaio de Lilia Moritz Schwarcz, um pequeno volume chamado “A vinda da família real portuguesa para o Brasil” (José Olympio, 125 páginas). Nosso tenente era meio lendeiro, e se punha como testemunha de fatos que lhe foram narrados por outras pessoas – mas, ainda assim, o livrinho é uma delícia, e tem o grande mérito de contar, com o calor do momento vivido, algo de que ainda vamos ouvir falar muito ao longo do ano que vem.
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Em meados de setembro, o Re-toques, um grupo de música à falta de melhor palavra “erudita” meteu o pé na estrada: espineta, duas flautas, viola da gamba, respectivamente Sula, Laura, Helder, Mario. Durante três meses, eles percorreram o país de cima a baixo, e de um lado a outro, cumprindo um programa do SESC que leva novos sons ao interior. A rotina era alarmante: viajar, chegar, carregar as malas, se arrumar às pressas, tocar, fazer as malas, esperar no aeroporto, viajar, carregar as malas, se arrumar às pressas, tocar e assim por diante. Foram 73 concertos, cada qual numa cidade, sendo que eventualmente uma cidade era, digamos, Lajeado (Santa Catarina), e a próxima Boa Vista (Roraima).
Às vezes dava para tirar umas poucas fotos pelo caminho; às vezes nem isso. A viola da gamba sofreu acidentes, a espineta volta e meia ficava encalhada num depósito, à mercê das companhias aéreas. Mas, entre uma cidade e outra, Laura, minha irmã, sempre deu um jeitinho de atualizar o blog através do qual acompanhamos suas aventuras. Ela tem um olho delicado, uma sensibilidade especial para o que é original, bonito, curioso; minha imobilidade forçada foi atenuada por essas andanças, e pelo Brasil tantas vezes surpreendente que percorreu.
Hoje, terminada a epopéia, o Re-Toques volta finalmente à base. Quanto ao blog, continua no ar, em timbricas.blogspot.com, para que a gente possa refazer, quantas vezes quiser, essa incrível viagem; e para que possa ter, do conforto do lar refrigerado, uma idéia das agruras e das recompensas da vida mabembe.
(O Globo, Segundo Caderno, 20.12.2007)