17.11.05



Manaus

Lembranças de Macondo

Uma viagem ao Amazonas traz recordações antigas e observações novas

Quando a porta se abriu, o avião foi invadido por uma onda de ar indizivelmente quente; a maquiagem das senhoras derreteu-se de imediato e todos os óculos a bordo ficaram embaçados. Assim que chegamos aos pés da escada, não havia mais roupa que não estivesse encharcada de suor. Meia dúzia de turistas estrangeiros, vestidos como se fossem para um safári, pararam na pista, atarantados. O ar quente subia do asfalto criando visões distorcidas; a umidade grudava no corpo.

Tudo parecia acontecer em câmara lenta enquanto o Sol fritava nossos neurônios.

Os táxis eram fuscas, sem exceção -- e sem ar-refrigerado. Durante meia hora andamos pelo mato, mato mesmo, até chegar ao hotel; quando entrei no lobby gloriosamente refrigerado, é que me dei conta de que os meus jeans pingavam de suor. Isso nunca me aconteceu, antes ou depois: suar nas pernas. Fui para o quarto, larguei a mochila no chão, tirei a roupa, liguei o ventilador do teto e me atirei na cama, tentando arrumar as idéias no cérebro semicozido.

Eu estava no novíssimo Tropical de Manaus; corria o ano de 1977, e a minha missão era fazer uma reportagem sobre os dez anos da Zona Franca. Tinha uma lista de telefones, um calhamaço de informações, mas simplesmente não conseguia pensar. Na verdade, não conseguia fazer nada a não ser me deixar ficar lá, imóvel, tonta de calor e sufocada pela umidade. Liguei para a recepção pedindo gelo, muito gelo; recebi um balde com água e umas poucas pedrinhas flutuando, junto com as desculpas da camareira e a informação de que eu chegara à Amazônia no dia mais quente dos últimos dez anos.

O resto das minhas lembranças desta viagem é confuso e impressionista. Lembro-me de que havia diversos animais soltos pelos jardins do hotel, um dos quais, um mutum, fez amizade comigo e passou a me seguir por toda a parte; lembro-me de duas ou três repartições públicas kafkianas com ventiladores inúteis; lembro-me das ruas caóticas da Zona Franca, entupidas de gente comprando as maravilhas importadas às quais não tínhamos acesso no resto do país.

Descobri sabores genuinamente novos para mim e me decepcionei com os chips de banana que eram vendidos em cada esquina como se fossem batatas fritas, mas nos quais eu esperava açúcar e canela em vez de sal; fiquei fascinada com a confusão, o canto dos pássaros, os papagaios soltos voando para cá e para lá. Tomei banho no Rio Negro de madrugada, incapaz de dormir com o calor; tomei o único porre da minha vida na piscina, porque, na época, algum gênio da hotelaria decidiu que o bar só podia servir bebidas alcoólicas, e os litros d?água que o meu corpo exigia foram substituídos por caipirinhas de frutas exóticas.

No dia seguinte tive uma dor de cabeça que só posso descrever como amazônica, e passei o dia de cama, debaixo do ventilador inútil, convencida de que iria morrer.

Para minha surpresa, sobrevivi. E, apesar de ter achado Manaus uma cidade muito feia, voltei para casa completamente apaixonada pela região. Antes de ir para o Amazonas eu havia passado por Belém, com suas casas antigas e suas mangueiras carregadas de frutas. A cidade cheirava a manga, e mesmo no mercado, onde misturavam-se odores pouco salutares, o cheiro onipresente das frutas prevalecia. O Teatro, menos famoso do que o seu colega de Manaus, estava bem conservado, com seus pisos de madeira e cadeiras de palhinha; em Manaus, o pobre sobrevivente dos áureos tempos da borracha estava tão descaracterizado que tinha até portas de blindex. O que restava das casas antigas estava vindo abaixo, mesma sorte das antigas árvores, abatidas por um prefeito com mania de grandeza e modernidade, mas ignorante do sentido das duas palavras.

Ao longo dos anos, voltei algumas vezes a Manaus, que apesar de tudo me fascina com a sensação surrealista de ter caído dentro de um livro de Gabriel García Márquez. Estive lá no último fim de semana. Ao contrário da minha primeira visita, encontrei um calor perfeitamente suportável; e o passar do tempo está fazendo bem à cidade. As árvores plantadas para substituir aquelas assassinadas há tantos anos estão crescendo e fazendo um bonito: as mangueiras, todas de manguinhas de fora, estão lindas. O Teatro, amorosamente restaurado, é um primor; à sua volta, o que há de antigo vai sendo recuperado, e é possível entrever, aqui e ali, entre os horrendos caixotes da "arquitetura" moderna, um frontão trabalhado, uns azulejos, umas datas que remetem ao passado.

Por outro lado, a velha viagem de táxi alucinógena pelo meio do mato até o hotel acabou. Hoje o Tropical está praticamente dentro da cidade, que foi se espichando. A Ponta Negra, onde reinava absoluto, hoje cheia de edifícios modernosos, poderia estar em qualquer lugar: na Barra, no Panamá, em Florianópolis ou Hong-Kong. O próprio hotel se encarregou de erguer uma extensão de 16 andares, o Tropical Business (!).

Os bichos que tanto me cativaram continuam lá -- mas agora, coitados, presos em jaulas aflitivas. O encanto do convívio já era. Vi uma família de capivaras cheia de capivarinhas por trás das grades, uns caititus enjaulados, umas araras contidas por telas. Até entendo que um ou outro turista tenham reclamado de uma bicada ou mordida, mas, com exceção das onças e dos jacarés, não vejo que mal podem fazer aqueles pobrezinhos.

Uma das boas lembranças da minha vida é ter passado uma semana na companhia de um mutum apaixonado, que abaixava a cabeça para ganhar carinho assim que me via.

(Durante as próximas duas semanas vou tirar férias da coluna; enquanto isso, vocês tiram férias de mim. Até a vista!)


(O Globo, Segundo Caderno, 17.11.2005)

Nenhum comentário: