19.3.09
Caso Sean: assim é se lhe parece
Tenho acompanhado, primeiro pela internet e agora por todos os cantos, a história do Sean, o garoto que vem sendo disputado pelo pai americano e pela família brasileira. E cheguei, finalmente, à minha conclusão definitiva: um bom juiz de vara de família é criatura que, ao morrer, merece ir direto para o céu, sem escala, com todas as mordomias da Primeira Classe! Uma coisa é discutir o caso na mesa de um bar, nas caixas de comentários dos blogs ou mesmo aqui nesta crônica, opinião amplificada porque sai no jornal mas, ao fim e ao cabo, só isso, uma opinião. Outra, bem diferente, é ter de tomar a decisão real que vai afetar, de forma dramática, a vida dos envolvidos. Ouve-se um lado, e os fatos são incontestáveis; ouve-se o outro, e é claro que tem toda a razão; ouve-se um terceiro e é por aí mesmo; e assim sucessivamente. Pirandello perde.
Como quase todo mundo, acho que o ideal para o garoto seria que o pai americano e a família brasileira entrassem em acordo, e que ele pudesse transitar livremente de um lado para outro, de um país para outro. Ao que tudo indica, Sean não corre maiores riscos nem nos Estados Unidos, nem aqui: afinal, se a briga está acontecendo é, em tese, por excesso, e não falta, de amor.
De qualquer forma, antes de ir adiante, aviso: não sou nada imparcial em relação ao caso. Ao contrário de quase todo mundo, pelo menos nas campanhas histéricas que vejo na internet, torço, e torço muito, para que o menino possa continuar no Brasil. Aqui estão as referências afetivas que lhe restaram da mãe; além disso, entre a família nuclear (pai, mãe, filhos) e a grande família (pai, mãe e filhos, mais tios, primos, avós e quem mais houver) sou, sempre, por esta. Tenho uma visão latina da vida: quanto mais gente houver em torno de uma criança, sobretudo de uma criança órfã, melhor. Vocês conhecem o provérbio africano, não é? "É preciso uma aldeia para fazer um homem.” Pois. Acredito nele.
Acho que seria uma barbaridade arrancar do Brasil, sem mais nem menos, um menino que viveu aqui a maior parte da vida, e a sua formação essencial. E acho que talvez tenha sido por isso que, desde o começo, fiquei com um pé atrás em relação ao pai, que logo após a morte da ex-mulher já estava aqui para levar a criança embora, depois de passar anos sem vê-la. Acrescentar ao trauma da perda da mãe a perda da família, da irmã recém-nascida, dos amigos, da escola e da cidade não me pareceu ato de quem tivesse o bem-estar do menino em mente.
Também não sou imparcial porque sou avó, e porque não consigo deixar de me solidarizar com uma mulher que, depois de passar pela dor de perder a filha tão jovem, e de um jeito tão estúpido, agora é ameaçada de perder o neto para um homem que lhe é praticamente um desconhecido. Eu também lutaria pelo meu neto, ora se não.
Tirando isso, há certas coisas que me desagradam profundamente nessa história, a começar pela forma midiática com que o pai passou a se manifestar e a expor o filho ao público, uma vez desaparecida a mulher que poderia contradizê-lo. A essa altura, aliás, uma das principais acusações que lhe faz o lado brasileiro, a de ser um desempregado, já não faz qualquer sentido. Ele virou pai profissional e, quer recupere Sean quer não, certamente escreverá um livro sobre a sua luta, e venderá os direitos para o cinema; dará palestras motivacionais muito bem pagas e, como é bonito, receberá convites para fazer anúncios de produtos diversos. Desconfio, ainda, do caráter panfletário com que o caso vem sendo conduzido nos Estados Unidos, dos políticos que estão aproveitando a chance para fazer média com o eleitorado, e da evidente satisfação com que gringos que nada têm a ver com o caso correm, feito hienas, para os seus quinze minutos de fama.
Mas o que me deixa mesmo indignada é a covardia e a falta de respeito dos ataques feitos à mãe, que morreu e não pode se defender. O que é isso?! Em que mundo estamos?! Fico revoltada com a falsidade dos que se declaram fervorosos defensores da lei, da moral e dos bons costumes, e que não hesitam em julgar e condenar essa moça que, certamente, agiu motivada por puro desespero.
Não conheci a Bruna, mas não acredito nem um pouco no conto de fadas descrito pelo pai. O que eu sei, com certeza, é que uma mulher feliz não larga o marido, mesmo que esteja morando numa cabana sem aquecimento na Sibéria, e que esteja se matando para sustentar a família. Quem acredita nisso consegue acreditar em qualquer coisa, até nas boas intenções de um pai que vem sete vezes ao Brasil e que não vê o filho.
H-e-l-l-o-o-u?! Se alguém levasse um dos meus filhos para outro país e eu conseguisse chegar até aquele país, duvido, mas duvido muito, que houvesse força capaz de me impedir de vê-lo. Eu acamparia em frente à casa, me deitaria no caminho do ônibus escolar, escalaria o prédio – em suma, faria tal banzé que, mais hora menos hora, alguém teria de tomar conhecimento da coisa. Encontrem os seguranças que a família contratou para amarrar e amordaçar o pai, e aí vamos descobrir se, de fato, alguém o impediu de fazer o que quer que fosse.
Por outro lado, chego a achar comovente a luta de João Paulo Lins e Silva. Conheço muitos pais biológicos que não fariam metade do que está fazendo para ficar com Sean. Seria tão mais simples dar de ombros e entregá-lo ao pai biológico! Em vez disso, ele está agüentando o peso de ser transformado em vilão e de ver o nome da sua família no centro de uma campanha sistemática de demolição. É um alvo fácil, o rapaz. É advogado, é rico, é conhecido: pau nele!
Mas eu me pergunto: se ele se chamasse João das Couves e fosse marceneiro, professor ou entomologista, de que lado estaria a opinião pública?
Vocês decidem.
(O Globo, Segundo Caderno, 19.3.2009)
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