12.3.09

O paraíso, tão perto do inferno



A igreja precisa urgentemente
de uma máquina de lavar


À esquerda, vêem-se piscinas naturais, protegidas do mar aberto por uma série de recifes; à direta, os recifes seguem até a curva da praia, onde o contraste entre a cor e o temperamento das águas torna-se espetacular. De um lado, o verde turvo do mar aberto e batido; do outro, o azul transparente das lagoas mansas, onde nadam pequenos peixes, caranguejos se escondem, ouriços ameaçam e garças e maçaricos almoçam sossegados. Poderia ser, perfeitamente, a visão imemorial de um mundo perdido no tempo, solto entre criação e descobrimento, sem vestígios de modernidade; mas a ilusão se desfaz rapidinho. Logo ali atrás, debaixo de uma barraca, o notebook me aguarda.

No ponto onde me encontro, recebo fracos sinais das redes wi-fi de dois grandes resorts, mas dispenso-os para me conectar através de um modem 3G – nem tão 3G assim aqui em Porto de Galinhas, Pernambuco, mas rápido o suficiente para que eu dê vários vivas à tecnologia. O Summerville, que me hospeda, tem células fotoelétricas nos bangalôs, para que a luz não precise ficar acesa a noite toda; a chave só atende por esse nome porque assim continuamos a chamar os cartões magnéticos que hoje abrem portas no mundo inteiro; a televisão do quarto pega canais de todos os cantos, exatamente como se estivéssemos em São Paulo, Tóquio ou Nova York. Na babel do café da manhã, ouvem-se diálogos numa dúzia de línguas. Um pouco adiante, no centro de convenções, realiza-se o Bossa 09, encontro onde pesquisadores e desenvolvedores discutem o presente e o futuro da mobilidade. Apesar da paisagem atemporal, o século XXI brilha, aqui, em toda a sua glória.

Isso só contribui para tornar ainda mais bizarro o comportamento do arcebispo de Olinda e Recife, a apenas 70 quilômetros (e no sentido mais evoluído do mapa!). Em que caverna, em que clausura desconectada pode viver uma criatura para desconhecer assim o seu tempo? Como pode alguém que se arvora em líder espiritual ignorar a tal ponto os melhores sentimentos humanos?! É preciso ter uma mentalidade pré-cambriana, destituída de qualquer vestígio de compaixão, para condenar uma criança de nove anos a destino tão monstruoso. O pior é que, ao declarar que o aborto é crime mais grave do que o estupro, o bispo está, com certeza, sendo sincero e coerente com os problemas de seu empregador. Afinal, se estupro e pedofilia fossem motivo de excomunhão, a igreja teria sérios problemas de RH.
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Eu não ia tocar nesse assunto. A minha visão deste espaço é, de modo geral, a de uma área de lazer. Até chegar aqui, à última página do Segundo Caderno, o leitor já passou por tantas notícias de política, polícia e economia, que não merece sofrer mais. Por outro lado, como deixar passar em branco a quantidade de forças do mal reunidas contra uma única criança?! Um padrasto estuprador, uma mãe “distraída”, um bispo sem coração... mas o que é isso?!

Há quem entenda de doutrina católica que afirme ter o arcebispo agido corretamente ao excomungar os médicos que salvaram a vida da menina. Nem discuto essa questão. Acho a excomunhão um anacronismo tão ridículo que, aplicada hoje, e por esta igreja, está mais para condecoração e ponto no currículo. Mas ao afirmar em público que o aborto é mais grave do que o estupro, o bispo saiu completamente da sua seara, e deu aval eclesiástico a potenciais estupradores. Mesmo o papa, que não poupa esforços para conduzir a igreja de volta à idade das trevas, ainda não ousou tanto.

Minha esperança é que esse tiro funesto saia pela culatra. A discussão sobre o aborto, que a igreja insiste em abafar sempre que vem à tona, voltou reforçada. Já não era sem tempo. A sua criminalização é uma das maiores violências institucionais contra as mulheres, especialmente as menos favorecidas, por vezes vítimas de procedimentos tão primitivos quanto a mente do arcebispo de Olinda e Recife.

Eu não sou "a favor do aborto"; acho que há um sério erro conceitual nessa expressão. Sou, isso sim, a favor de que cada mulher possa livremente optar por fazer ou não fazer aborto, com a assistência médica necessária. Abortos clandestinos são a principal causa de morte materna na América Latina; é estranho que quem diz “defender a vida” não leve essa estatística em consideração.

O fato é que ninguém faz aborto por esporte ou por prazer; assim como a verdade é que as penas da lei e os desastres de abortos malfeitos sobram quase sempre para as mulheres mais pobres, sem acesso a métodos contraceptivos eficazes. Ou seja, para aquelas para quem o aborto é, tantas vezes, a única solução para não trazer ao mundo um filho indesejado. Ora, um estado que não dá educação sexual eficiente, não faz campanhas educativas nem põe meios de controle de natalidade ao dispor de todos os seus cidadãos, não pode condenar quem quer que seja por recorrer a métodos extremos.

Acho corretíssimo que cada um siga os ditames da sua consciência ou das suas convicções religiosas; mas acho revoltante que se imponha a toda população o ponto de vista de qualquer específica religião. Vocês se lembram? Até a distribuição gratuita das pílulas do dia seguinte, uma das poucas idéias sensatas do ex-prefeito César Maia, foi cancelada por pressão da arquidiocese do Rio de Janeiro.

A igreja já atormentou demais a vida da humanidade. Agora devia ir lavar seu tanque de roupa suja e deixar que vivêssemos em paz.


(O Globo, Segundo Caderno, 12.3.2009)

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