26.3.09

O mundo em quadrinhos



Meu Pai nasceu em 1907 e, embora tenha passado a infância sem sobressaltos numa Budapeste sofisticada e cosmopolita, seus anos de tranqüilidade duraram pouco: logo foi levado de roldão pela dramática História européia do século passado. Sobreviveu por milagre e, tendo que reconstruir aqui a vida que lá fora desfeita, não teve nem o tempo nem os meios para levar adiante sua grande vocação de viajante. Passeou o que lhe foi dado e o que pode, e que nem foi pouco, mas tenho certeza que, fossem outras as circunstâncias, teria feito pelo menos meia dúzia de voltas ao mundo.

Sei disso porque herdei dele a mesma inquietação que, em alemão, tem um nome tão apropriado quanto intraduzível: wanderlust, a ânsia de vagar. Não consigo ouvir o motor de um avião sem pensar para onde vai (e sem uma pontinha de inveja de quem está a bordo). Nos aeroportos e nas estações de trem européias, paro fascinada diante das informações sobre chegadas e partidas, olhando para todos aqueles destinos como um ser esfomeado diante do cardápio do Lamas.

A curiosidade de Papai a respeito do planeta era inversamente proporcional aos fundos de que dispunha para conhecê-lo. Assim é que, na impossibilidade de percorrer o mundo todo, guardava, zelosamente, os pedacinhos de mundo que nos chegavam em casa. Era ávido colecionador de selos e de cartões postais, que organizava por países e temas. Para a coleção não valiam exemplares comprados em lojas especializadas; todos tinham que ter sido enviados para algum de nós ou, no máximo, adquiridos por nós ou por conhecidos no país de origem. Acho que, com isso, ganhavam legitimidade aos seus olhos. Nunca se interessou por selos raros, nem teve qualquer interesse em saber o valor dos que tinha. Aquilo era diversão, não era comércio.

Quem não consegue mais imaginar diversão sem pilha, bateria ou tomada pode estranhar, mas garanto: ver selos e cartões postais com Papai era uma viagem, em todos os sentidos da palavra. Nos selos havia bichos, plantas, pessoas importantes. Nos cartões, lugares exóticos e distantes, que aguardavam a nossa visita. Acho que não há cidade relevante no mundo ocidental da qual eu não tenha pelo menos idéia desde a infância: em algum lugar da memória, carrego milhares de praças, pontes e vistas panorâmicas. Quando chego a alguma delas pela primeira vez, e finalmente junto o nome à pessoa, cria-se uma sensação de intimidade impossível de descrever.

Por isso mantenho, até hoje, o hábito de enviar cartões postais; e por isso, também, não tenho coragem de jogar fora os que recebo. Não chego a catalogá-los, como Papai fazia, mas guardo-os pelas várias caixas que enfeitam a casa. De vez em quando abro uma delas em busca de uma caneta ou de moedinhas para completar um trocado e, sem querer, me lembro de um amigo, de um restaurante, de um lugar.

Já os selos voltaram à minha vida há pouco tempo, mais exatamente quando a encomenda de uns DVDs que fiz no eBay veio com lindos selos da Malásia. Escrevi um email para a vendedora agradecendo o capricho, e descobri porque os tinha recebido: é que ela colecionara selos durante anos, e agora aproveitava parte da coleção para pagar a postagem. Tinha folhas e folhas de selos não separados, séries especiais, sequencias completas – enfim, todas essas especialidades filatélicas que, com certeza, terão um nome “científico” que desconheço. Quando fiz outra encomenda, minha já amiga Li caprichou, e colou selos em toda a superfície visível do pacote. Não tenho certeza se, diante de um mapa sem os nomes dos países, eu saberia apontar direito onde fica a Malásia; mas, baseada neste único pacote, posso afirmar que, se não faz os selos mais bonitos do mundo, chega perto.

Através da amizade com Li descobri outras coisas. Notei que a sua caligrafia dos caracteres ocidentais, sempre difícil para quem usa outro alfabeto, era muito boa, e perguntei se havia estudado fora. Não, respondeu; foi educada em inglês e chinês. E me ensinou que no país existem três grupos étnicos distintos (chineses, indianos e malaios), que conservam suas línguas e tradições. O idioma comum de quem tem educação é inglês. Eu sei que o Google e a Wikipédia estão aí para que a gente encontre informações do gênero – mas quando é que a Malásia entraria no meu radar se não fosse pelo talento dos artistas gráficos que desenham seus selos?

Outro fornecedor de DVDs exóticos que se tornou amigo me mandou recentemente, dos Estados Unidos, um pacote com uma série de selos fantástica dos gibis da Marvel. Escrevi agradecendo, é claro, e contando quanto tinha aprendido com Li e com os lindos selos da Malásia. Adorei a resposta: “O eBay funciona melhor do que a ONU para promover o entendimento entre os povos”.

É por aí mesmo.


(O Globo, Segundo Caderno, 26.3.2009)

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