16.1.06



Da impossibilidade de amar amando,
e da falta de coragem da entrega

2046 -- Os segredos do amor


Quando o último dos últimos créditos de "2046 -- Os segredos do amor" rolou na tela, eu ainda não havia conseguido juntar os cacos do coração e reconectar as sinapses. Mesmo agora, passados três dias desde que vi o filme de Wong Kar-Wai, não estou inteiramente certa de ter conseguido ligar os fios corretamente e colado os pedacinhos todos; a sensação predominante é de que alguma coisa mudou para sempre em mim, algum sentimento profundo e oculto demais foi revirado e nada voltará a ser como antes.

As grandes obras de arte têm este poder, o de modificar radicalmente a forma como vemos o mundo ou confrontamos as nossas angústias; "2046" teria esta capacidade, mesmo que ficasse apenas na superfície, na sua gloriosa estética de sonho, perdida num ponto tão imaginário quanto aquele que dá título ao filme e que é, ao mesmo tempo, número de um quarto de hotel e título do romance escrito pelo jornalista Chow (Tony Leung), que conhecemos há cinco anos em "Amor à flor da pele". Um tempo onde tudo permanece imutável e, em tese, nada dói.

A questão é que tudo dói nesta Hong Kong dos anos 60, em que a Hollywood dos anos 30, seus galãs de bigodinho e brilhantina e suas mulheres impossivelmente bonitas se encontram na esquina com "Blade Runner".

Corpo e alma: idiomas diferentes

Hospedado no quarto 2047, Chow envolve-se com Jing (Faye Wong), filha do dono do hotel, e Bai Ling (Zhang Ziyi), uma garota de programa. Outras mulheres vêm e vão; aliás, tudo vem e vai, todos estão em constante movimento, indo ou vindo de países e cidades diferentes, ainda que sempre fechados em espaços claustrofóbicos e decadentes.

Quando a câmera se dá ao luxo de mostrar a cidade, o ambiente é escuro, chove, as paredes descascam. Não há conforto no mundo, como não há conforto na alma, exceto no trem imaginário que vem de 2046 -- mas nele as mulheres que poderiam fazer Chow feliz são andróides, não têm alma e não conseguem responder aos anseios que, afinal, ele consegue exprimir.

Na realidade paralela do filme, a sua incapacidade de amar é a tônica dominante de uma atmosfera de eterno desejo e perpétua solidão -- mesmo que, aparentemente, pessoas se encontrem, palavras sejam trocadas e supostamente compreendidas, e todos os sentimentos estejam à flor da pele -- nos olhos, nos gestos, nos corpos que se entendem a despeito da incomunicabilidade dos espíritos.

A tragédia de Chow e das mulheres que cruzam o seu caminho, no entanto, está menos na sua suposta incapacidade de amar do que na coragem que lhe falta para a entrega, menos na audácia desafiadora dos gestos do que no medo do amor: é preciso coragem demais para ser feliz.

(O Globo, Segundo Caderno, 16.1.2006)

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