25.1.06




Um corte de linho, por Rachel de Queiroz

Na trama de uma velha crônica, o fio da história familiar


Estava na casa da minha irmã quando, por acaso, resolvi remexer uma pilha de revistas velhas. Uma delas era a edição de 12 de abril de 1952 de "O Cruzeiro", onde, na última página, Rachel de Queiroz assinava a sua crônica habitual:

"Recebi ontem um presente que me deixou comovida: um corte de linho tecido por meus amigos húngaros da Ilha do Governador. A fazenda é perfeita, só não parece linho irlandês porque é mais bonita, tem aquele jeito pessoal e inconfundível que marca a obra do artesão, sem a uniformidade, a falta de caráter e de vida do trabalho em série.

Faz cinco anos que eles chegaram ao Brasil, exaustos da guerra e dos nazistas, em busca de trabalho e de paz. Pela bitola do serviço de emigração, creio que não passariam por bons emigrantes: eram gente urbana, dois homens e quatro mulheres. A palavra certa para os chamar é mesmo intelectuais: não tinham costume de lidar no campo, não eram profissionalmente operários ou técnicos. A idéia é terrível, mas verdadeira: intelectuais! Amam os livros e os lêem, a parte mais importante da bagagem que trouxeram era isso mesmo, livros. Têm atrás de si uma longa ascendência de letrados, e chegam a possuir um irmão muito ilustre, que honraria qualquer república de letras e é hoje uma das colunas mestras da nossa. A própria profissão do falecido pai da família era de livreiro.

Pois chegaram esses viajantes de terras de além, fixaram-se numa casa modesta da ilha, e puseram mãos ao trabalho. A idéia era montarem um tear, a fim de produzir pano grosso, ou mais propriamente essa entretela que os alfaiates usam para enchimento, a qual é feita com crina de cavalo e é uma indústria típica de artesanato, segundo a praticam lá na pátria de onde vieram. Construíram, eles próprios, o primeiro tear, todo em madeira. Tinha qualquer coisa de primitivo e bíblico aquela estranha máquina que a gente via, roncando na pequena oficina improvisada ao fundo do quintal. A urdidura era armada em grandes painéis, a agulha mordia o fio da crina, a lançadeira corria dum lado para o outro. A entretela saiu boa -- parece que não é produto para se fabricar em série, e assim não sofre a concorrência das grandes fábricas -- achou mercado franco. Era uma das moças que vendia diretamente aos consumidores, porque os homens confessam que "não têm jeito para negociar".

E então fez-se o segundo tear menos primitivo, mais sofisticado. Terceiro tear veio depois, logo o quarto, e agora já lá estão cinco trabalhando. A fabricação de entretela ampliou-se. Entraram a produzir tecidos mais finos, o bom gosto começou a se introduzir no trabalho, como compete a toda boa obra de artesão. Com pouco tempo as senhoras da casa só vestiam vestidos feitos com os panos da fabricação doméstica. E agora estão fazendo linho, tecido de rei, belo e impecável: e no casamento de um dos irmãos (os dois últimos solteiros já se casaram aqui no Brasil), toda a família foi ao pretório -- inclusive a noiva -- com roupa de linho fabricado na oficina de casa.

Não é uma beleza? Não consola a gente ver como são grandes e inesgotáveis os recursos de alma dos homens? Cito este exemplo, especialmente comovida. Primeiro porque eles são meus amigos, e a segurança com que eles se estabelecem e prosperam aqui é grata ao nosso coração. Depois porque, meu Deus, não são candidatos a Matarazzo, não pensam em ser reis da entretela -- querem apenas viver, com decência e tranqüilidade; trabalham apenas para conseguirem a vida que, por direito de nascença, cabe a todo ser humano: garantir a subsistência de cada dia, e usar o resto das horas livres lendo, estudando, escutando música, tratando das flores do jardim, tomando banho de mar, criando cachorros. Dignidade e segurança, é só o que eles almejam.

E pode-se dizer que já o conseguiram. Este corte de linho, que tenho pena até de mandar cortar para um vestido, é bem um símbolo de tudo que eles já realizaram em apenas cinco anos. E as autoridades emigratórias que não se assustem tanto, quando escutam dizer de um candidato a brasileiro que ele não é lavrador nem vaqueiro, apenas um intelectual. Intelectual não é sinônimo de portador de moléstia ruim. Nem os intelectuais são tão indesejáveis quanto parecem. Têm, ao contrário, muita coisa em comum com este país onde vieram se abrigar, depois da tempestade na Europa: como esta terra do Brasil, em se querendo plantar, eles dão para tudo."

* * *

A noiva vestida de linho era, nem preciso dizer, minha Mãe; e os hábeis tecelões, o que restou da família de meu Pai. Infelizmente, o futuro não lhes sorriu como previa a crônica; quando a pequena fábrica começou a crescer, foi massacrada sem remorsos pelos grandes fabricantes de tecido, que viram com olhos menos poéticos do que os de Rachel de Queiroz a saga daqueles emigrantes.


(O Globo, Segundo Caderno, 26.1.2006)

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