12.1.06



Lembranças antigas e deslumbramentos novos


Recortes de Hong-Kong, um filme inesquecível e um desfile de sonho na Fashion Rio.


Sentada na beira da cama, no meio da madrugada, eu olhava o mundo lá fora: a chuva que caía sem parar, a baía vinte e tantos andares abaixo, o ir e vir de embarcações, o luminoso redondo e vermelho no prédio ao lado, néons de todas as cores e feitios nos outros prédios, todos cristaleiras como aquele em que me encontrava, hóspede do quarto 2504.

Lembro do número porque o anotei nas fotografias, mas acho que me lembraria do andar de qualquer forma, porque tenho uma certa fixação com a altura das escadas Magirus. Em caso de incêndio, não seria uma delas a me tirar de lá. Havia esquecido de conferir quantos andares me separavam do heliporto do terraço e estava vagamente inquieta -- não com medo de um improvável incêndio ou calamidade de qualquer sorte, mas talvez porque aquela fosse a forma de tornar real a angústia de um organismo que havia dado meia volta ao mundo e não sabia mais se o que sentia era fome de jantar ou de café da manhã, insônia ou, pura e simplesmente, vontade de acordar no devido tempo.

Eu estava em Hong Kong e havia acabado de me dar conta de que nunca estivera tão longe de casa -- e tão longe, também, de tudo o que me era familiar e conhecido, do idioma à comida, passando pela linguagem corporal das pessoas e pelos sons, cheiros e sinais ininteligíveis das ruas.

No dia seguinte, aproveitando uma brecha na programação que cumpria, fugi do grupo e saí sozinha pela cidade, munida de um mapa e de um cartão do hotel. À luz do dia a distância de casa não me perturbava tanto, mas Hong Kong continuava me angustiando. Não estava nem frio nem calor, caía uma chuva fininha que não incomodava, mas a quantidade de gente na rua e aquele mar de rostos essencialmente orientais me causavam uma estranheza difícil de decodificar, sobretudo porque a lenda de que todo mundo fala inglês na ilha já se havia desfeito na segunda esquina.

Eu precisava muito conversar com alguém sobre aquela cidade, sobre aquele ponto do globo em que, tendo o Rio como referência, estava de cabeça para baixo. A alguns quarteirões do hotel vi um minúsculo salão de cabelereiro com um cartaz em inglês e não pensei duas vezes. A cabeleireira, aleluia!, não só falava inglês como, ainda por cima, me explicou que eu tinha sorte, muita sorte, porque ela, por acaso, havia feito um curso especial de corte de cabelo ocidental. Segundo entendi, nossos fios de cabelo são redondos e os deles, oblongos, ou vice-versa, e se alguém não está treinado nesta sutil diferença as possibilidades de desastre são incomensuráveis. Ela havia sido boa aluna: saí com um lindo corte e com a sensação de, enfim, ter feito contato com alguém do lugar.

o O o


Antes de viajar, quando comentei com um amigo de São Francisco que iria a Hong Kong, ele me sugeriu ficar uns dias a mais para ir conhecer também a China. Observei que, para mim, que nunca tinha ido ao Oriente, Hong Kong já era China suficiente, obrigada; mas caminhando entre os hotéis, olhando a ilha do outro lado e comendo uns pêssegos deliciosos, me dei conta de que se aquela cidade estranha era a China, a China não era nada do que eu imaginara até então.

Pouco depois de sair do salão, esbarrei, por acaso, com um grupo de ingleses e dinamarqueses residentes. Fomos tomar um café juntos. Conversa vai, conversa vem, um deles me perguntou por que eu não aproveitava, espichava a viagem e ia conhecer a China. Repeti o que já havia dito ao amigo de São Francisco. O grupo todo ergueu os olhos para o céu, teatralmente, como quem implora, "Ó aí de cima, mande por favor uma luz para esta pobre criatura desorientada!"

o O o


Hong Kong é imensa, confusa, ruidosa -- e, nisso, é igualzinha à China que conheci dois anos depois, quando, finalmente, fui para o continente. Mas, vista em retrospectiva, tem muito pouco de China, e muito de... ora, Hong Kong. Uma espécie de terra de ninguém, um porto de passagem, um umbigo financeiro sem rosto onde o que importa é ter, gastar, ostentar. É assustadora e ao mesmo tempo muito atraente, e tenho uma vontade enorme de voltar; mas hoje, quando alguém me diz que vai para lá, eu também pergunto por que não aproveita e tira uns dias para conhecer a China.

o O o


Hong Kong e a China andam muito presentes no meu pensamento por esses dias por uma coincidência de felicidades: "2046 -- os segredos do amor", o extraordinário filme de Kar Wai Wong, e o desfile impecável da Marcela Virzi na Fashion Rio. Estou convencida de que estilistas, assim como desenhistas e pintores, criam à sua imagem e semelhança. Marcela, visceralmente chique e elegante, voltou o seu olhar sutil e original para a China.

As roupas que resultaram disso estão entre as mais lindas e preciosas da temporada.

(O Globo, Segundo Caderno, 12.1.2006)

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