Das flores para Yemanjá à vida dos batráquios
Pensamentos dispersos sobre o mar, o Ano Novo,algumas decisões e diversos sapos
Como quase todos os habitantes da cidade e a quase totalidade dos turistas que para cá vieram durante as festas, eu também fui até a praia na noite do dia 31, toda vestidinha de branco, estourar um espumante à meia-noite e jogar flores para Yemanjá. Desde que me tenho por gente cumpro este ritual de molhar os pés no mar durante a passagem do ano; nas poucas vezes em que fui impedida de fazê-lo, não consegui evitar o sentimento aziago de que algo de muito ruim me aconteceria em breve.
Se o pressentimento chegou a se concretizar alguma vez não sei dizer, porque, felizmente, não sou de ruminar pensamentos ruins: meu DNA está programado para dar preferência às boas lembranças. Mas que foram Réveillons horríveis, cheios de maus presságios, lá isso foram.
Como quase todos os habitantes do planeta, também, passei o dia seguinte em estado de torpor, espichada na rede, sem ânimo para nada, exceto pensar no que nos leva a imaginar que a simples virada de uma folha do calendário, invenção humana sem qualquer relação com o divino ou com os ciclos naturais da terra, vai mudar o que quer que seja -- exceto o número do ano no dito calendário.
Pensei também nessa estranha relação com o mar que tantos de nós temos, e em como mar e praia são, com perdão do trocadilho, praias totalmente diferentes. Não sou pessoa de praia, mas de mar. Não gosto de assar na areia mas gosto de barcos, gosto do sal e da água que o vento sopra na cara da gente; não há montanha russa que me dê uma fração da adrenalina que me dá um mar bem batido. Gosto sobretudo de mergulhar, especialmente em noites de lua cheia, quando as lanternas tornam-se dispensáveis; há poucas coisas mais lindas do que descer a uns poucos metros, sentar na areia e lá ficar, olhando uma ou outra tartaruga insone, peixes que não se vêem de dia e a luminescência da água, causada por seres tão minúsculos que tudo o que deles vemos é o brilho, como zilhões de confetes luminosos.
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Depois de toda esta vã filosofia, fiz, naturalmente, uma lista mental de decisões de Ano Novo. Afinal, uma das principais utilidades do ano novo é dar, às editorias de jornais e revistas, a chance de elaborarem listas de melhores e piores do ano, e, às pessoas físicas, a oportunidade de fazer seu próprio balanço existencial. Minhas decisões foram mais ou menos as mesmas de 2005 mas, como sempre, acredito que, em 2006, tudo vai ser diferente.
E o que é que eu decidi?
Bem, em 2006 eu vou, finalmente, tomar vergonha na cara e emagrecer;
Vou passar a freqüentar a academia, que deixei de lado em meados do ano passado;
Vou manter a escrivaninha e, se possível, todo o escritório, em ordem;
Vou renovar a carteira de motorista, vencida há dez anos;
Vou reduzir a biblioteca ao essencial, aos livros que amo e aos que ainda não li;
Vou tentar passar menos tempo no computador e mais tempo com os livros, para ver se consigo pôr a leitura em dia;
Vou fazer uma última tentativa de reconciliação entre as minhas plantas desmilingüidas e a Família Gato.
Está de bom tamanho, não? Se eu conseguir cumprir pelo menos uma dessas metas -- de preferência a primeira! -- serei uma mulher ainda mais feliz ao fim de 2006.
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Recebi um email da leitora Alice Giannini com uma reclamação muito justa: por que não se dá destaque algum à categoria especial da Corrida de São Silvestre?
"É simplesmente como não se não existisse, o que é um absurdo," diz ela. "A largada da categoria acontece todos os anos antes da largada feminina, e o exemplo de superação que esses atletas portadores de algum tipo de deficiência dão ao mundo poderia incentivar muitas outras pessoas!!!?"
Tem toda a razão, Alice: estou com você.
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A nota lúgubre da virada foi a entrevista do presidente ao Fantástico. Ninguém merecia começar o ano sendo tachado de idiota, como mais uma vez nos tachou o Grande Líder, ao nos querer fazer crer que nada soube, nada ouviu, nada julga. Ninguém merecia começar o ano ouvindo as declarações cínicas de um homem covarde que não se envergonha de jogar todos os "erros" nas costas dos subordinados, numa vã tentativa de se manter acima do lamaçal em que chafurda.
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Já a nota mais simpática veio da Inglaterra,onde as autoridades decidiram fechar, temporariamente, uma estrada em Somerset. Motivo: nesta época, ela é caminho dos sapos, que a atravessam para chegar ao brejo onde acasalam. A decisão foi tomada depois do fracasso de uma patrulha de proteção criada no ano passado, que apesar de ter conseguido ajudar mais de mil batráquios na travessia, não conseguiu impedir o habitual massacre automobilístico dos bichinhos.
Taí: cada país dá aos sapos o tratamento que julga mais adequado. A Inglaterra os protege. Aqui, nos obrigam a engoli-los.
(O Globo, Segundo Caderno, 5.1.2006)
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