19.6.03




Torturante beleza

Depois de passar séculos espremendo os pés das meninas em bandagens para que permanecessem minúsculos a vida inteira, os chineses partiram para uma nova forma de tortura estética: agora, esticam as pernas das mulheres (também, menos, dos homens) para que ganhem alguns centímetros a mais. Isso se faz por meio de uma cirurgia em que os ossos são serrados logo abaixo dos joelhos e aparafusados a uma estrutura metálica externa. Nesta, há uma chave que, girada todos os dias, aumenta milimetricamente a distância entre os ossos; o espaço é preenchido pelo tecido que o próprio corpo fabrica para a cicatrização, a qual, pelas voltas da manivela, vai sendo adiada indefinida e dolorosamente.

Essa dor é quase insuportável. Para cada centímetro aumentado é necessário pelo menos um mês de recuperação e fisioterapia. O custo é estratosférico. Os resultados deixam a desejar — casos de pernas de tamanhos diferentes são comuns e, não raro, os ossos não cicatrizam bem, vindo a quebrar-se com facilidade. Ainda assim, as filas de espera para consulta com os cirurgiões mais conhecidos ultrapassam um ano.

Acontece que a nova obsessão chinesa é a altura. Ter menos de 1,60m na China equivale, mais ou menos, a ter mais de 45 anos no Brasil: as oportunidades de trabalho e de relacionamento diminuem drasticamente.

A reportagem da BBC que me chamou a atenção para o drama das baixinhas chinesas mostrava uma quantidade de classificados, de ofertas de emprego a buscas de namorada, em que a altura era o primeiro, e fundamental, requisito. Mais tarde, procurando outras informações na internet, encontrei depoimentos de pessoas que foram rejeitadas até em exames de admissão para faculdades de direito — pois advogados e juízes devem “impressionar” nos tribunais — e para a carreira diplomática — porque a representação chinesa tem que ficar, literalmente, à altura dos seus pares estrangeiros.

* * *

É muito fácil nos indignarmos com os chineses por causa disso. Tamanho, entre nós, nunca chegou a ser documento — ou não, pelo menos, a ponto de nos fazer cometer loucuras como essa cirurgia. Como é possível que, num país de gente baixa, justamente a pouca altura seja considerada fator de exclusão social?!

Mas eles não são muito diferentes de nós na sua busca insana por um ideal inatingível. No nosso país de morenas carnudas, por exemplo, o ideal de beleza que a televisão apresenta às criancinhas é, há muitas gerações, a loura magra. Se isso não é um golpe na auto-estima da maior parte da população, não sei o que seja. Para mim, pelo menos, é um soco no olho da estética coletiva do país, que ano após ano vê emergirem do caldo da cultura popular novas levas de celebridades “louras”, cada vez mais turbinadas e artificiais, cada vez mais distantes da realidade.

* * *

No domingo passado, o “Fantástico” entrevistou um grupo de mulheres, para saber como se viam ao espelho. A resposta foi previsível mas, ainda assim, impressionante: não houve uma que se dissesse satisfeita com a própria aparência. E como poderiam, coitadas? Como é que a vida real pode enfrentar a fantasia desvairada que, hoje, se entende por “mulher bonita”?

Como é que uma mulher comum, que trabalha, cria filho e se estressa com as contas no fim do mês, pode ficar contente consigo mesma se o modelo que a mídia lhe aponta como mulher bonita é um mix de acasos genéticos, cirurgia plástica, estilos de vida especialíssimos, truques de luz e de produção e, last but not least , efeitos de computador?

* * *

Há alguns anos, uma atriz minha conhecida fez um ensaio para a “Playboy”. Era uma das mulheres mais lindas do país. No tal ensaio, ficou deslumbrante. Simplesmente perfeita. Temos a mesma idade e até a mesma altura, mas as semelhanças, nós duas bem sabemos, param por aí. Confesso: aquelas fotos me deram uma certa depressão.

Tempos depois, visitando amigos num estúdio em São Paulo, pude ver o “antes” e o “depois” das fotos. Foi um saudável choque de realidade. A moça continuava uma maravilha, mas era uma maravilha da sua (nossa) idade. Meus amigos gráficos tinham retocado detalhes que eu nunca teria percebido: manchinhas de sol na pele, pequenas veias e rugas, detalhes nos pés e, sobretudo, nas mãos.

Pensei nas centenas, talvez milhares, de mulheres que deviam ter se sentido diminuídas com aquela imagem perfeita, e fiquei — filosoficamente — revoltada. Ora pipocas, então elas não estavam se comparando com uma linda mulher de 40 anos, mas sim com uma linda mulher de 25! E o pior é que essa contrafação não era, sequer, excepcional: acontece sempre, o tempo todo, mesmo em fotos de beldades de 18.

Enfim; o fato é que nos horrorizamos com as pernas serradas das chinesas mas, aqui mesmo, o que não falta é gente disposta a recorrer a tratamentos cada vez mais radicais para modificar a natureza e deter o tempo. Tentando atingir, em carne e osso —- e algum silicone —- uma perfeição impossível.

(O Globo, Segundo Caderno, 19.6.2003)

Nenhum comentário: