Torturante beleza
Depois de passar séculos espremendo os pés das meninas em bandagens para que permanecessem minúsculos a vida inteira, os chineses partiram para uma nova forma de tortura estética: agora, esticam as pernas das mulheres (também, menos, dos homens) para que ganhem alguns centímetros a mais. Isso se faz por meio de uma cirurgia em que os ossos são serrados logo abaixo dos joelhos e aparafusados a uma estrutura metálica externa. Nesta, há uma chave que, girada todos os dias, aumenta milimetricamente a distância entre os ossos; o espaço é preenchido pelo tecido que o próprio corpo fabrica para a cicatrização, a qual, pelas voltas da manivela, vai sendo adiada indefinida e dolorosamente.Essa dor é quase insuportável. Para cada centímetro aumentado é necessário pelo menos um mês de recuperação e fisioterapia. O custo é estratosférico. Os resultados deixam a desejar — casos de pernas de tamanhos diferentes são comuns e, não raro, os ossos não cicatrizam bem, vindo a quebrar-se com facilidade. Ainda assim, as filas de espera para consulta com os cirurgiões mais conhecidos ultrapassam um ano.
Acontece que a nova obsessão chinesa é a altura. Ter menos de 1,60m na China equivale, mais ou menos, a ter mais de 45 anos no Brasil: as oportunidades de trabalho e de relacionamento diminuem drasticamente.
A reportagem da BBC que me chamou a atenção para o drama das baixinhas chinesas mostrava uma quantidade de classificados, de ofertas de emprego a buscas de namorada, em que a altura era o primeiro, e fundamental, requisito. Mais tarde, procurando outras informações na internet, encontrei depoimentos de pessoas que foram rejeitadas até em exames de admissão para faculdades de direito — pois advogados e juízes devem “impressionar” nos tribunais — e para a carreira diplomática — porque a representação chinesa tem que ficar, literalmente, à altura dos seus pares estrangeiros.
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Mas eles não são muito diferentes de nós na sua busca insana por um ideal inatingível. No nosso país de morenas carnudas, por exemplo, o ideal de beleza que a televisão apresenta às criancinhas é, há muitas gerações, a loura magra. Se isso não é um golpe na auto-estima da maior parte da população, não sei o que seja. Para mim, pelo menos, é um soco no olho da estética coletiva do país, que ano após ano vê emergirem do caldo da cultura popular novas levas de celebridades “louras”, cada vez mais turbinadas e artificiais, cada vez mais distantes da realidade.
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Como é que uma mulher comum, que trabalha, cria filho e se estressa com as contas no fim do mês, pode ficar contente consigo mesma se o modelo que a mídia lhe aponta como mulher bonita é um mix de acasos genéticos, cirurgia plástica, estilos de vida especialíssimos, truques de luz e de produção e, last but not least , efeitos de computador?
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Tempos depois, visitando amigos num estúdio em São Paulo, pude ver o “antes” e o “depois” das fotos. Foi um saudável choque de realidade. A moça continuava uma maravilha, mas era uma maravilha da sua (nossa) idade. Meus amigos gráficos tinham retocado detalhes que eu nunca teria percebido: manchinhas de sol na pele, pequenas veias e rugas, detalhes nos pés e, sobretudo, nas mãos.
Pensei nas centenas, talvez milhares, de mulheres que deviam ter se sentido diminuídas com aquela imagem perfeita, e fiquei — filosoficamente — revoltada. Ora pipocas, então elas não estavam se comparando com uma linda mulher de 40 anos, mas sim com uma linda mulher de 25! E o pior é que essa contrafação não era, sequer, excepcional: acontece sempre, o tempo todo, mesmo em fotos de beldades de 18.
Enfim; o fato é que nos horrorizamos com as pernas serradas das chinesas mas, aqui mesmo, o que não falta é gente disposta a recorrer a tratamentos cada vez mais radicais para modificar a natureza e deter o tempo. Tentando atingir, em carne e osso —- e algum silicone —- uma perfeição impossível.
(O Globo, Segundo Caderno, 19.6.2003)
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