26.6.03



Harry Potter não é mais o mesmo

Acho que se eu não tivesse lido o primeiro Harry Potter em 1998, assim que saiu nos EUA, pouco estaria me lixando para esse “Harry Potter and the Order of the Phoenix”, que acaba de chegar às livrarias com tanto estardalhaço. Eu seria, provavelmente, mais uma entre as tantas pessoas que não leram, não gostaram e têm raiva de quem gosta, entediadas de antemão com a overdose de merchandising.

Acontece que, naquela época, “Harry Potter and the Sorcerer’s Stone” — que aqui viria a ser “Harry Potter e a Pedra Filosofal” — era apenas um livro de sucesso. Havia feito furor na Inglaterra, vinha sendo ardorosamente discutido na internet e tinha, afinal de contas, 309 páginas. Ora, para mim, qualquer autor que consiga fazer crianças lerem 309 páginas, de livre e espontânea vontade, é um herói.

Comprei o livro num aeroporto, pouco antes de embarcar, e fiquei chateada quando, doze horas depois, o avião aterrissou e tive que interromper a leitura: faltava tão pouco para terminar! Continuei lendo no táxi e, em casa, só fui conversar direito com as pessoas e os gatos quando cheguei ao fim. As crianças inglesas estavam cobertas de razão: Harry Potter era mesmo o máximo.

De lá para cá, passei a aguardar ansiosamente cada novo volume. No segundo, já tinha companhia: José Lewgoy, que também ficou apaixonado pela galera de Hogwarts, conseguiu o seu em tempo recorde. No terceiro, fui mais rápida, e passei duas semanas contando vantagem.

Aí, claro, o mundo inteiro já sabia quem era Harry Potter. Com o filme, o hype em torno da série atingiu níveis insuportáveis — e perdi completamente o interesse pelo quarto volume. Eu me recusava a compactuar com aquela ferramenta capitalista, aquela isca criada para arrancar dinheiro do bolso de pais e mães, impotentes diante da sanha do mercado.

Mas o Lewgoy, que era um sábio e não se deixava iludir por essas coisas, nem contra nem a favor, me deu o toque: “Esquece a propaganda e lê. É muito bom.”

Mais do que bom, o quarto Harry Potter foi, para mim, o melhor da série, o mais forte, o mais bem estruturado como thriller psicológico. Lá para o fim me peguei aos prantos, desconsolada com tanta maldade. E muito irritada comigo mesma: “Caramba, pára com isso!”, me cobrava. “É só um livro! E para crianças, ainda por cima...!” É, respondia meu outro lado, mas “A pequena vendedora de fósforos” também é para crianças. E é só um conto.

“A pequena vendedora de fósforos”, de Hans Christian Andersen, é, como vocês sabem, a história mais triste do mundo. E aí é que ficou feia a coisa, entre aquelas duas tristezas inconsoláveis. Porque, depois de uma certa idade, não é o enredo que leva a gente às lágrimas, naturalmente, mas sim a sua identificação com o que há de ruim e de malsão no mundo.

Sob este aspecto, o novo livro promete. Ainda não cheguei ao momento em que morre um dos principais personagens, mas a trama se adensa. O universo leve e fantasioso dos primeiros livros (apesar dos acontecimentos dramáticos) ficou definitivamente para trás.

Vítima da fama e da adolescência, Harry Potter anda mergulhado em crises, com raiva de tudo e de todos. Como se não bastasse, o seu mundo inteiro — Hogwarts inclusive — revela-se menos simples do pensava. Nada é bem o que parece ser; ninguém é cem por cento confiável, para o bem ou para o mal.

O livro demora a engatar. Em termos de ação, vai direto ao assunto, mas não é difícil perceber, nos primeiros capítulos, as engrenagens que vão puxando e empurrando os carrinhos da montanha-russa. Houve muita especulação em torno das dificuldades que J.K. Rowling teria enfrentado para levar a tarefa a cabo; ela as nega e diz que apenas quis escrever sem a pressão dos prazos.

Pelo que li do livro até agora, fico com os especuladores. Em vários pontos falta a naturalidade dos volumes anteriores, a fluência, o humor nas entrelinhas. Ainda assim, J.K. Rowling continua contando uma história como ninguém. Tem estilo e criatividade e — aleluia! — não está nem aí para o que pais e professores possam pensar a respeito dos seus livros. Escreve para pessoas, e pronto. Que a maioria dessas pessoas seja menor de idade — bom, fazer o quê? É um fato da vida.

* * *

E, por falar em fatos da vida: não consigo deixar de pensar no coleguinha português com quem J.K. ficou um ano casada. Vocês sabem dessa história, não? Ela tinha 26 anos, estava no Porto vivendo como professora de inglês para estrangeiros e se encantou com um jovem repórter da televisão local. O casamento, desastroso, acabou com uma briga em que ele a pôs para fora de casa aos tapas, no meio da madrugada, com a filha pequena.

J.K. entrou em depressão e se refugiou na Escócia, ao lado da irmã. Passou seis meses vivendo de auxílio-desemprego e morando num conjugado tão sem jeito que, para escrever a estranha história de um garoto mágico que tinha na cabeça, só mesmo indo para o café da esquina, que tinha boas mesas e um ambiente mais aconchegante.

O resto, como dizem, é História.


(O Globo, Segundo Caderno, 26.6.2003)

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