4.8.11

A vida imobiliária



O telefone toca na hora do jantar. É um corretor querendo saber se estou interessada em vender meu apartamento. Tem sido assim nos últimos tempos: volta e meia recebo ligações de corretores. Tenho pena do rapaz, que deve estar colado ao aparelho desde cedo, ligando para todo mundo nesses tempos de mercado maluco; mas não, não tenho a menor vontade de sair de onde estou, muito obrigada. Na verdade, considerando os atuais preços dos imóveis cariocas, eu nem poderia estar aqui.

Sou um caso clássico de antiguidade no posto: ao longo do tempo, acompanhei a mudança de guarda no prédio, construído para funcionários públicos e por eles habitado, até serem expulsos pelo IPTU e pelo condomínio cada vez mais altos, por ofertas irresistíveis, pelo próprio tempo. Ainda temos um ou dois valentes remanescentes daquela época, mas cada novo morador que chega faz uma reforma mais caprichada do que as anteriores e traz um carro mais sofisticado para o estacionamento. Pois é: nem garagem propriamente dita o prédio tem, o que mostra a que ponto de desespero imobiliário chegamos.
   
Tenho certa inveja de quem gosta de se mudar: deve ser divertido trocar de vista e de arredores. Este, porém, não é esporte para quem tem os milhares de livros que tenho, e que só eu sei arrumar de forma a encontrar o que preciso. Além disso, sou uma compradora chata. Para mim não bastam sol da manhã, prédio bem conservado, vizinhança calma; preciso também que o apartamento tenha boas vibrações, coisa difícil de ver pelo Zap e de explicar aos corretores.

Quando me mudei do Bairro Peixoto para a Lagoa, lá se vão muitas luas, vi nada mais nada menos do que 95 apartamentos, nos mais diversos bairros. Foi uma mudança forçada: o prédio onde passei minha infância e juventude estava condenado pela prefeitura e, quando finalmente conseguimos vendê-lo, tinha uma diferença de 60 centímetros entre a frente e os fundos. Se soltassemos uma bola de gude na sala, ela ia rolando sozinha, toda serelepe, até o quarto dos meus pais. As visitas sempre se impressionavam com isso.

 No mesmo apartamento, antes de nós, havia morado uma certa família Motta, que tinha um filho chamado Nelson. Pois é, aquele mesmo, que hoje escreve na página de opinião, e que, com tanta freqüência, é a tinturaria da minha alma. O mundo é um ovo, não é mesmo? E digo mais: um ovo de codorna! Gilberto Gil morou no primeiro andar, e lá nasceu a minha amiga Preta. E, anos depois, olhando pela janela, passei a ter vista para o Xexéo, que morava quase em frente.

Mas esta não é a crônica daquele pequeno prédio assassinado. É, antes, da dificuldade que foi achar substituto para ele. Eu precisava encontrar o impossível: um apartamento que não me desse sensação de perda.

Estamos falando de uma época pré-internet, em que não havia nem álbum de foto nas corretoras. Era preciso ver os apartamentos um a um, mesmo aqueles que descartaríamos por foto. Uma das etapas fundamentais na busca de um imóvel era aprender a decifrar o código dos classificados: “indevassável”, por exemplo, significava vista para uma empena cega; “silencioso” queria dizer fundos; “aconchegante”, pequeno; “tipo casa”, primeiro andar; “bom investimento”, desastre total.

O primeiro que eu vi era “aconchegante”. Para piorar, o “aconchego” havia sido acentuado pela divisão do (pouco) espaço em saletas e quartinhos minúsculos. Mas o apartamento tinha uma vista fenomenal para a Lagoa e um ótimo astral. Depois vi de tudo, inclusive o último andar daquele predinho gótico que fica na Avenida Copacabana, na altura da Praça do Lido. O chão era lindo, a divisão interna generosa e inteligente, com luz direta em todos os cômodos. Se não fosse pelo barulho da avenida, teria sido uma opção, porque, apesar do visual bizarro do prédio, a energia do apartamento era muito positiva.

Dos 95 apartamentos que percorri, uns 90 eram inviáveis: escuros, mal localizados, mal projetados, com quartos de empregada de tamanho obsceno. Dizem que o Brasil tem os melhores arquitetos do mundo mas, pelo visto, só os piores construíam no Rio de Janeiro.

Não agüentava mais ver porcarias mal conservadas. Uma noite, sonhei com a vista do “aconchegante” da Lagoa, e decidi que aquele era o meu apartamento. Tinha a metade do tamanho do que seria demolido no Bairro Peixoto, mas eu não corria risco de ficar infeliz vendo aquela vista todos os dias. De manhã liguei para o corretor. Ele continuava à venda. Explica-se: na época, a Lagoa era o lugar mais abandonado da Zona Sul. Sofria com mortandades regulares de peixes e com uma falta de segurança crônica. Era impossível passear às suas margens.

Tempos depois, me mudei para o prédio ao lado, este em que moro até hoje. Pedi ao Zé, nosso fiel porteiro, que me avisasse quando houvesse unidade à venda. Um dia, apareceu um apartamento perfeito, pronto para morar – mas carregado de más vibrações. Esperei um pouco mais. No fim, fiquei com um que tinha uma extravagante decoração etrusca, e que me consumiu muito dinheiro e energia em obras; mas que astral!

No dia em que fui assinar a escritura, os proprietários, de mudança para Petrópolis, estavam tristes:

-- Temos tanta pena de vender este apartamento! Fomos muito felizes nele.

Como eles, também tenho sido muito feliz aqui. Os telefonemas dos corretores me deixam cheia de orgulho pela minha casinha, mas não, não mesmo, muito obrigada.


(O Globo, Segundo Caderno, 4.8.2011)