27.8.09

O mangarito e outros mistérios



E lá ia um troglodita todo contente pela floresta quando viu um vistoso cogumelo debaixo de uma árvore. Catou, comeu e cataploft, caiu duro lá na frente. Quando os outros trogloditas o encontraram, se é que encontraram, já devia estar meio devorado pelos bichos. E, mesmo que não estivesse, não existindo CSI na época, seria muito difícil ligar causa e efeito; de modo que muitos e muitos trogloditas continuaram comendo cogumelos e caindo duros quando catavam os errados. Era de se esperar que o ser humano tivesse desistido dos cogumelos há séculos, se não milênios.

Enquanto os trogloditas do primeiro parágrafo faziam roleta russa com fungos, trogloditas do outro lado do mundo se divertiam com uma espécie sinistra de baiacu que atende por fugu. Este é um peixe tão letal, mas tão letal, que é a única iguaria que, por questões de segurança, o imperador do Japão é proibido de comer. Para ser servido em restaurantes, deve ser tratado por especialistas que fazem cursos de até dois anos e que, mui apropriadamente, diplomam-se comendo o que prepararam. Apesar de tudo o que se sabe sobre o fugu, e apesar de o mar estar cheio de sardinhas gostosas e inofensivas, há japoneses morrendo de fugu até hoje.

Caso igualmente estranho é o da maniçoba, prato típico do Pará, feito com folhas de mandioca que devem ser cozidas durante oito dias, até perderem o veneno. Fico imaginando como é que se chegou a essa conclusão. Um primeiro índio comeu a primeira folha crua, e paf; um segundo índio cozinhou a folha, e paf; um terceiro índio cozinhou a folha por dois dias, e paf... Será que, a essa altura, já não estava claro que não servia para comer? Quantas pessoas não se envenenaram até ficar estabelecido que, fervendo o raio da planta durante uma semana, ela não apresentaria mais perigo? Isso, é bom lembrar, numa terra de fartura, onde basta esticar a mão para colher as frutas mais deliciosas.

Esta atração fatal e insistente da humanidade pela gastronomia de risco me fascina. Jamais tocarei num pedaço de fugu que seja mas, cada vez que abro um vidrinho de champignons, sinto-me grata aos milhares de bípedes que abreviaram sua existência terrestre em prol da nossa segurança. Diante de certos risotti ai funghi, aliás, sinto até vontade de mandar celebrar missas por suas almas. Quanto à maniçoba, já comi e até gostei, embora não entenda a teimosia de se ter levado aquilo adiante a tão alto custo.

Não são apenas os mistérios fatais que me espantam. O café, por exemplo: se o que aprendi na escola estava certo, foi descoberto porque, um dia, alguém percebeu que as cabras ficavam espertas quando comiam suas frutinhas. Pois comeram-se as frutinhas e nada aconteceu. Puseram-se então as frutinhas para secar, descararam-se os coquinhos resultantes, torraram-se os grãos que estavam dentro dos coquinhos, moeram-se os grãos, ferveu-se o pó... Que gente tinhosa!

E o chocolate? Qual de nós urbanóides jamais ligaria o nome à pessoa se visse um fruto de cacau de um lado e um Sonho de Valsa do outro? Visitei as ruínas de muitas construções astecas no México e fiquei encantada, mas um povo que descobre que das sementes de uma fruta dura e sem graça extrai-se a maravilha dos deuses nem precisava ter deixado tais monumentos para provar o seu valor.

* * *

Tudo isso me voltou à cabeça quando a Roberta Sudbrack me apresentou aos mangaritos. Vínhamos teclando sobre esses ilustres desconhecidos, e ela atiçou a minha curiosidade. Fui ao restaurante experimentá-los. O mangarito é um tubérculozinho do tamanho de uma trufa, e assim, à primeira vista, não tem nada de especial. É mais uma daquelas coisas que, se dependessem de criaturas como eu, jamais virariam comida. A sorte é que há no mundo pessoas que observam cabras, insistem nos cogumelos, moem sementes e exploram tubérculos insignificantes.

Nas mãos da Roberta, os mangaritos se transformaram no recheio de um ravióli que, por cima, trouxe pequenas lascas, como micro batatas portuguesas, e um crocante das cascas. Emocionante! Minha única dúvida é que, tendo sido preparados por quem foram, não sei se o mérito é deles ou dela, única pessoa que consegue fazer com que eu goste de quiabo. Tão bom quanto comê-los é ouvir a Roberta falar a seu respeito, porque aí se vai além da gastronomia:

-- Os mangaritos estão em extinção, são difíceis de encontrar. A primeira caixa levou meses para chegar! Corri com ela para a cozinha na maior emoção, e comecei a experimentar de todos os jeitos, cortei, fritei, cozinhei... Quando assei a casca e aquele cheiro maravilhoso se espalhou, foi uma felicidade no ar, parecia sobremesa.

Ela não sabe, mas essa nossa conversa foi uma grande revelação antropológica para mim. Diante de alguém capaz de se entusiasmar de tal maneira por uns trocinhos pelos quais eu não teria dado nada, entendi, de repente, o que levou os bípedes nossos ancestrais a tentar extrair, através dos milênios, o sabor das fontes mais inesperadas. Quando alguém como a Roberta olha para uma pedra perguntando “Que gosto terá isso?”, a pedra que se cuide.

Ah, sim: para conhecer os mangaritos e ler a história do seu João Lino Vieira, que os está salvando sozinho da extinção, leiam o blog mangarito.notlong.com. Não deixem de ler os comentários, comoventes. Foram escritos, em sua maioria, por gente do interior, que morre de saudades dos mangaritos e quer comprar sementes e mudas para começar uma pequena lavoura nostálgica.


(O Globo, Segundo Caderno, 27.8.2009)

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