27.12.08

Fôlego para encarar a vida


Todos nós temos desejos ocultos. Um dos meus sempre foi usar o termo Bildungsroman, que, como outras palavras compostas alemãs, dá a qualquer texto, imediatamente, um ar de grande densidade acadêmica. Pois chegou a minha hora! Bildungsroman é a definição chique para romance de formação, vale dizer, aquele em que eventos da vida do personagem na infância e na juventude são narrados em detalhes que nos levam a entender como a criança se transformou no adulto que é. O grande Bildungsroman da minha geração, por exemplo, foi “O apanhador no campo de centeio”, de J. D. Sallinger; não é coincidência que eu tenha me lembrado tanto de Holden Caufield quando terminei de ler as aventuras de Bruce Pike, o Pikelet, herói de “Fôlego”.

Parece pretensão usar palavra tão pomposa para um livrinho de meras 252 páginas, metade das quais gastas na descrição de ondas e das diversas sensações de atravessá-las (ou não) em cima de uma prancha; mas, à parte o número de páginas, se há uma coisa da qual não se pode chamar o romance de Tim Winton é de livrinho. Extraordinariamente bem construído, duro e poético ao mesmo tempo, nostálgico e dolorido, ele continua conosco tempos depois de terminadas as tais 252 páginas.

Pikelet, o narrador, cresce no interior da Austrália, numa minúscula cidade dominada por uma serraria, por algumas fazendas e pelo tédio. Diverte-se pescando, nadando no rio e disputando com seu amigo Loonie quem fica mais tempo embaixo d’água sem respirar. Um dia vão até o mar, distante uns poucos quilômetros, e vêem, pela primeira vez, alguns surfistas nas ondas. Aquele é um momento de revelação: “O quanto era estranho ver aqueles homens fazerem algo belo. Algo sem sentido, algo elegante, como se ninguém estivesse vendo, como se ninguém se importasse.”

A partir daí, nada será como antes. Pikelet e Loonie entregam-se ao surfe de corpo e alma, e em breve, para inveja dos demais garotos com quem dividem a praia, são “adotados” por Sando, um americano cheio de mistérios, que enfrenta monstros inimagináveis do alto de sua prancha antiga e dos seus trinta e tantos anos. Incentivados por ele, buscam situações cada vez mais perigosas: escapar da morte passa a ser a prova irrefutável de que estão vivos. Qualquer outra coisa é... bem, qualquer outra coisa.

“Tudo ao meu redor parecia não ter sentido algum, parecia pequeno demais,” lembra Pikelet. “Na rua, os moradores do lugar pareciam covardes, fracos, ordinários. Onde quer que eu fosse, eu me sentia como a última pessoa acordada num aposento cheio de gente adormecida.”

Mais adiante, Eva, mulher de Sando, esquiadora radical cuja carreira foi interrompida por um acidente, e ela mesma uma espécie de dependente química de situações de risco, observa que, quando o fazendeiro vai a Paris, não quer mais voltar para a fazenda. Pois da Paris de um mar assustador, onde às ondas grandes junta-se um eventual tubarão branco, Pikelet e Loonie não conseguem mais voltar à fazenda dos sentimentos comuns, corriqueiros.

Há, porém, uma diferença importante entre eles. Por trás da coragem de Loonie nota-se um elemento de auto-destruição que falta a Pikelet. A amizade entre os dois começa a se desfazer na Nautilus, uma onda “tão feia quanto um monumento cívico”, que Pikelet tem o bom-senso de evitar. Como esta não é uma história a respeito de bom-senso, Sando passa a dar preferência a Loonie, e sobra para Pikelet a companhia de Eva. Difícil saber qual dos dois meninos enfrenta o pior perigo.

Ao contrário do que essas linhas gerais podem dar a perceber, “Fôlego” não é um livro sobre o surfe, ainda que tenha as mais lindas e emocionantes descrições de ondas que já li, assim como arrepiantes retratos da natureza australiana. Como em todo Bildungsroman (ha!) de respeito, suas páginas são atravessadas principalmente por sentimentos e conflitos, e pela inevitável amargura do amadurecimento. Gostar ou não gostar de surfe é indiferente para apreciar o romance, muito embora seja difícil terminar sua leitura sem, pelo menos, compreender um pouco melhor o que leva um ser humano a desafiar uma parede de água que não está nem aí para a sua presença.

A maior pista do tema de Tim Winton está no título, uma palavra mais abrangente em inglês do que em português: “breath” é fôlego, sim, mas é também respiração, inspiração, trégua, hálito, momento, sopro, momento, pausa, alento... To breath or not breath, eis a questão; eis a tênue fronteira entre a vida e a morte. Ter fôlego, por outro lado, é apenas uma questão de preparo físico. Tanto quanto a água, ou até mais, é o ar o grande elemento deste romance deslumbrante e inesquecível.

Em tempo: a diferença entre “breath” e “fôlego” é uma idiossincrasia lingüística, e não culpa da tradutora Juliana Lemos, que fez um excelente trabalho. O livro contou ainda com a revisão técnica de Fred d’Orey, que não só sabe tudo sobre as ondas, mas é, também, um craque com as palavras.


(O Globo, Prosa e Verso, 27.12.2008)

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