9.8.07



Irineu e os outros

Na segunda-feira retrasada, assim que cheguei da Espanha, tive que ir ao banco tratar de um assunto tenebroso; cheguei nervosa e saí arrasada. A agência fica num edifício que dá para o estacionamento do Globo e, por acaso, havia lá um gatinho abandonado que me seguiu, me esperou pacientemente na porta e, depois, me acompanhou até a entrada do jornal.

Ali há uns bancos -- dos outros, bonzinhos, de madeira -- encostados à parede. Sentei para arrumar as idéias, gatinho ao lado. Gatos são ótimos conselheiros para toda a sorte de problemas. Percebem quando estamos aflitos e têm o poder de nos ajudar a pôr os dramas na devida perspectiva: são práticos e objetivos. Aquele filhote magro e sujo não era exceção. Ele sabia que eu precisava de apoio moral e me distraiu até que as nuvens mais negras se dissipassem

O dia seguinte era meu aniversário. O inferno zodiacal estava por pouco e, afinal, dinheiro é o de menos quando se tem saúde e felicidade. Para não falar na sorte, que inventa coincidências: como se a vida, ao me aprontar uma cilada absurda, oferecesse, com a outra mão, uma alegriazinha quadrúpede de consolo.

* * *

Na quarta, levei uma tigela e ração para o jornal. O gatinho estava magro demais, precisava comer. Minha idéia era cuidar dele lá, mantendo-o debaixo do olho, mas sem levá-lo embora. No estacionamento há um entra-e-sai muito divertido para um gato, e dócil como era, o pequeno alvinegro não teria dificuldade em fazer amigos. Cheguei e lá estava ele, dormindo encostado ao meio-fio, pronto para ser atropelado.

Acordou quando me aproximei e se atirou à ração. Estava horrivelmente fedorento: debaixo da pata dianteira direita, que nem conseguia encostar no chão, havia uma ferida purulenta. Tentei descobrir o que acontecera. Ninguém fazia idéia. Tudo o que consegui saber é que o gatinho fora abandonado há cerca de uma semana, e que vinha emagrecendo desde então. Um dos rapazes do estacionamento já até comprara ração, mas o bichinho tinha medo dos fundos, onde ficam as motos, único lugar onde as tigelinhas de água e comida ficariam a salvo do pessoal da limpeza.

Trabalhei pensando no gatinho. Levá-lo para casa seria maluquice: a Família Gato, composta de sete véinhos rabugentos, não ia aceitar um pirralho novo assim sem mais nem menos. Por outro lado, do jeito que estava, o coitado não durava uma semana... Quando saí, peguei uma caixa de papelão, catei-o no estacionamento e fomos juntos para casa. Eu trataria dele e depois encontraria um bom lar para abrigá-lo.

Antes mesmo disso, porém, ele já tinha sido batizado pelo Nelson Vasconcelos:

-- Um gato no estacionamento? Tem que se chamar Irineu...

O Globo, para quem não sabe, fica na Rua Irineu Marinho, nome do fundador do jornal. O nome pegou na hora, até porque o Irineu tem muita cara de Irineu. Tem um jeito circunspecto e engraçado, acentuado por longos bigodes brancos.

* * *

Irineu passou a primeira noite em casa de quarentena, no quarto da Bia. Não causou maior comoção, porque os gatos mal me viram chegar. No dia seguinte tomou um banho que revelou que estava ainda mais magro do que parecia. O veterinário diagnosticou uma verminose daquelas e uma cistite enjoada. O machucado da pata, tirando a gravidade da infecção e o seu aspecto horroroso, não pedia outra coisa além de antibiótico. Ao todo, se tudo corresse bem, Irineu passaria dez dias lá em casa, em tratamento, antes de seguir seu destino.

A quarentena foi mantida durante os próximos dias. Sempre que se traz um bicho novo para casa é bom deixá-lo separado dos outros por um tempo, para evitar eventuais contaminações e, também, para que os donos da casa se acostumem com o cheiro do recém-chegado, e com a idéia de que há mais um quadrúpede na área.

Aos poucos, fui liberando o Irineu: primeiro um tiquinho à toa, depois por períodos maiores. No começo muito fraquinho, ele basicamente me seguia até a sala, espichava-se no tapete e lá ficava. A Famiglia Gatto, extremamente cabreira, observava de longe. Os mais valentes se aventuravam: chegavam perto, cheiravam o forasteiro, cheiravam, cheiravam... e FSSSSSSSS!, saíam correndo.

Venho usando todos os meus truques de psicologia felina para que não se sintam mal. Faço de conta que não estou nem aí para o pequeno e me desmancho em carinhos com eles. Dou petiscos. Faço bolinhas de papel que atiro em todas as direções. Pois sim! Os véinhos me olham altaneiros e viram as costas, para que fique bem claro que estão me ignorando.

Enquanto isso, Irineu progride a olhos vistos. É um dos gatos de melhor índole que já conheci; não só aceita tomar remédio como,depois,se aninha no colo pedindo carinho. Está mais gordinho, a ferida da pata secou e, ante-ontem, saiu correndo pela casa, brincando com uma bolinha. Já anda interessadíssimo nos outros gatos.Acho que sua mãe deve ser uma tricolor, pois segue a Keaton para todo lado, chorando baixinho. Identifica-se com a Netcat, quase igual a ele, e tenta brincar com a Pipoca siamesa, que é pequenina e tem o seu tamanho.

Ainda não conseguiu conquistar ninguém -- a não ser o bípede de coração mole que escreve essas mal tecladas, e que desconfia que o Irineu nunca mais vai embora.

(O Globo, Segundo Caderno, 9.8.2007)

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