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Foto de Pedro Kirilos |
Estava um dia um cidadão calmamente podando as arvorezinhas do mangue à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas quando um rapaz, que passava na calçada, chamou-o às falas:
-- Ei, você! O que é que você pensa que está fazendo?!
-- Podando as árvores, como se pode ver.
-- Você não pode mexer nelas. Eu plantei esse mangue!
-- Você?
-- Eu mesmo. Com o professor Moscatelli.
-- Eu sou o Moscatelli.
Grande saia justa! O rapaz, que não via o professor há dez anos, queria sumir no chão. Moscatelli deu uma volta na conversa e ambos se despediram entre risadas. Afinal, estavam do mesmo lado. Mas nem só quem plantou pessoalmente alguma das mudinhas do mangue tem orgulho dele; hoje, todo mundo que freqüenta a Lagoa tem o maior apego pelo seu ecossistema, e está pronto a defendê-lo.
Nem sempre foi assim. Até os anos 90, a Lagoa era um absurdo biológico e urbanístico. Um espelho d’água magnífico, plantado numa paisagem deslumbrante... e completamente abandonado pelo poder público. Nas pracinhas que existiam no Cantagalo e no Parque dos Patins os brinquedos quebrados eram uma ameaça às crianças; os assaltantes que trabalhavam ao longo das margens eram uma ameaça aos adultos; e as constantes mortandades de peixes eram, se não uma ameaça, uma desgraça aparentemente inevitável.
Um dia, um jovem biólogo nascido em Copacabana, parcialmente criado em Roma e que militava em Angra, viu uma tainha saltar na água da Lagoa.
-- Eu não tinha nenhuma familiaridade com essa área, -- diz Moscatelli. – Vi aquele peixe e pensei, “Ué, mas isso é peixe de água salobra... esse troço aqui tem a ver com mangue.” Fui à Fundação Osvaldo Cruz e, num periódico de 1936, encontrei um estudo de Lejeune de Oliveira sobre a comunidade biológica da Lagoa, que confirmou o que eu havia imaginado.
Ao dizer que Moscatelli militava em Angra, não uso o verbo à toa. Seus pais tinham casa na cidade e ele ficava indignado em ver como o meio-ambiente, em tese protegido por legislação desde 1965, vinha sendo sistematicamente agredido. Tomou a si as dores da natureza e passou a lutar contra os predadores, primeiro com a ajuda da Sociedade Angrense de Proteção Ecológica, depois sob as asas da prefeitura, que chamou-o para a Secretaria de Meio Ambiente.
-- Em 1988, aos 24 anos, depois de fazer algumas denúncias na extinta TV Manchete, recebi meu primeiro convite para calar a boca, -- lembra ele. -- Um segundo programa não foi ao ar, e comecei a receber ameaças sinistras.
O que acontecia, basicamente, é que o seu trabalho na prefeitura contrariava os interesses da indústria imobiliária local. As ameaças passaram a ser dirigidas também a outros membros da família. Em breve, a situação ficou tão tensa que uma ONG alemã achou mais prudente tirá-lo do país por uns tempos.
Conversando os colegas em Berlim, Moscatelli teve grande dificuldade em explicar porque uma pessoa que apenas queria ver a lei cumprida corria risco de vida. Para os alemães, aquilo era um contrasenso. Por outro lado, viu as suas esperanças renovadas: lá também a recuperação ambiental havia sido vista com ceticismo pela população que, com o tempo, abraçou a causa de corpo e alma.
Depois de um ano, voltou ao Brasil, disposto a recuperar o manguezal da Lagoa. Era uma experiência inédita no país, onde acreditava-se que, uma vez destruído, um mangue não se refaz. Experiências em outras regiões tropicais desmentiam essa crença. Moscatelli transformou a Marajó do pai no “mangue-móvel”, e passava a semana trazendo mudas de Angra para o Rio. Para desespero da mãe, cultivava as plantinhas no apartamento dos pais, em Copacabana.
Dona Maria Cristina, feroz italiana do Sul, manifestava claramente o seu descontentamento; seu Giuseppe, italiano do Norte e diplomata por excelência, entrava com os panos quentes – mas mesmo ele estava cheio de dúvidas em relação ao projeto do filho. O que ele estava plantando não era exatamente um jardim convencional; valia a pena ter todo aquele trabalho para que, mais dia menos dia, alguma autoridade resolvesse arrancar tudo?
Não eram dúvidas infundadas. No começo dos anos 90, quando o mangue começou a tomar forma na Lagoa, as discussões a seu respeito eram intermináveis. A toda hora aparecia alguém nos jornais ou na televisão para dizer que 1) a Lagoa não era região de mangue; 2) o mangue fedia; 3) o mangue atraía mosquitos; 4) as árvores tirariam a vista do espelho d’água. Uma pessoa menos determinada teria desistido.
O que acabou com a polêmica foi a volta, lenta e gradual, da fauna. As garças foram as primeiras a chegar. Na sua esteira vieram socós, martins pescadores, savacus, frangos d’água... até marrecas já foram avistadas. Há caranguejos na lama, e a quantidade e a variedade de passarinhos aumenta ano a ano.
O plantio das árvores foi só parte desta redenção. Mais importante foi a verdadeira guerra travada contra o despejo de esgoto na água. A Cedae cismava em dizer que estava tudo bem; Moscatelli insistia em afirmar o contrário. Em 2002 chegou a se fantasiar de morte e a passear pela orla oferecendo cocôs de plástico à população, para dar mais ênfase ao seu argumento.
Suas palavras encontraram eco na sociedade, que organizou e participou dos célebres abraços na Lagoa, ridicularizados por quem não levava os ecologistas a sério, mas muito eficazes para atrair a atenção da mídia e conscientizar a população. As ações culminaram com uma auditoria na rede de esgotos da Lagoa. Descobriu-se que, entre 1985 e 2000, a Cedae investira apenas 1% da sua arrecadação na manutenção do sistema. 55% dos troncos coletores tinham mais de 60 anos.
-- Já era caso arqueológico! Cocôs históricos percorriam aquelas tubulações...
Caímos na risada. Estavamos conversando às margens da Lagoa, como não podia deixar de ser. E, nesse momento, fomos interrompidos por Carlos Henrique dos Santos, 43 anos, taxista, que aproveitava o dia de sol para passear com a tia.
-- Com licença? Sou seu fã, acho maravilhoso o trabalho que você vem desenvolvendo! Adoro quando você vai em cima dos homens, a gente tem mesmo que lutar pelo que acredita.
-- Quanto você pagou de cachê a ele pela participação, Moscatelli?
Mais risadas, mas Carlos Henrique fez questão de deixar claro que estava falando de coração aberto.
-- Tenho a maior admiração e respeito por esse homem. O trabalho dele é o máximo!
E, cá entre nós, é mesmo. É muito fácil destruir um ecossistema que leva milhares de anos para se formar, mas é preciso muita tenacidade e paciência para recriar a vida.
-- Na série Star Trek há personagens encarregados de visitar outros planetas e criar condições de vida. São os terra-formadores. Gosto de pensar em mim mesmo como um mangue-formador. Mas acho que isso estava escrito. Meu nome é Mario, mar e rio, que formam os manguezais. Sou canceriano, o signo do caranguejo, clássico habitante do mangue, regido pela lua, responsável pelas marés... Não tinha como escapar ao meu destino.
A dedicação integral de Moscatelli aos seus mangues chegou a criar alguns momentos de stress no casamento com Lucia, uma agrônoma bem-humorada que, com o tempo, passou a achar perfeitamente normal o modo de vida do marido.
-- A gente acaba se acostumando – diz ela. – Passar fim-de-semana plantando manguezal vira rotina. As meninas (Carolina, de 14 anos, e Giovanna, de nove) nem concebem o mundo longe de plantas, comigo no Jardim Botânico e o pai às voltas com o mangue.
A família é o grande esteio do nosso mangue-formador, que nela encontra a força e o apoio para seguir lutando. Depois da Lagoa, ele foi cuidar, com igual intensidade e dedicação, de outras áreas da cidade. Praticamente não há mangue no Rio que não tenha a sua intervenção, como Gramacho, onde plantou 35 hectares e cuida de outros 100, o Canal do Cunha no Fundão, a Baía de Guanabara... No complexo lagunar da Barra e de Jacarepaguá, trava, atualmente, uma batalha semelhante à que travou em relação à Lagoa. O projeto Olho Verde conta com o apoio da Camara Comunitária da Barra.
-- Aquelas cinco lagoas viraram latrinas. 80% do que está lá é lama e lixo, sendo que na Tijuca existe até lixo hospitalar. Na condição em que estão, elas podem até produzir cianobactérias, que são uma das causas de câncer do fígado, -- desespera-se. – Da última vez que sobrevoei a região, há alguns dias, contei 185 pneus, 35 sofás, uma máquina de lavar, uma caixa d’água de mil litros, um jumento morto, vários aparelhos de televisão... Quer dizer, em pleno Século XXI, ainda não aprendemos nada!
O atual sonho de Moscatelli é que, até 2014, este verdadeiro esgoto a céu aberto esteja limpo, e a caminho da regeneração. Se isso acontecer, a cidade poderá mostrar ao mundo, durante as Olimpíadas, uma linda paisagem. Caso contrário...
-- A Natureza tem limites. Eu ando extremamente preocupado com o que vejo. Estou com um sentimento ruim, como um elefante antes de uma tsunami. O tempo está acabando. Dinheiro eu tenho certeza que existe, mas a má gestão é crônica. Fico perplexo com isso, porque, no fundo, deixar um legado para os nossos filhos é o que todos nós queremos. Políticos inclusive, por difícil que seja acreditar nisso.
(O Globo, Rio, 7.8.2011)