Uma cápsula do tempo
a três horas do Rio
Cordial, bonita e descansada, Montevidéu é
uma espécie de Havana da América do Sul
O avião aterrissou às duas da manhã. A temperatura local era de quatro graus, e o pequeno aeroporto de Montevidéu se esvaziava depressa. A área de desembarque já estava deserta. Os dois guardas da alfândega apagaram a luz do cubículo, vestiram os capotes e deram o dia por encerrado. Ao passar por mim, sorriram gentilmente, fizeram rápida referência ao frio e me desejaram boa estadia na cidade.
Sobravam cinco pessoas no local, e nenhuma delas era o motorista que deveria estar ali. As duas moças com malas eram minhas colegas de infortúnio; os dois rapazes que conversavam na saída eram, respectivamente, o zelador e um taxista; e a loura bonita atrás do balcão de informações era a Fernanda, uma espécie de anjo da guarda de turistas desgarrados, que tomou a si nossas dores e passou a meia hora seguinte ao telefone, tentando resolver a situação.
O problema é que nenhuma de nós sabia em que hotel estava. O que sabíamos, com certeza, é que
não estávamos no hotel inicialmente programado: overbooking.
— Não se preocupe! — insistira o agente de viagens no dia anterior. — A pessoa encarregada de ir buscá-la vai com todas as instruções.
Pois a nossa Fernanda telefonou para um, telefonou para outro, deixou o balcão, foi até a rua ver se havia alguém nos esperando, voltou, telefonou mais. Quando o taxista veio se despedir, pediu que esperasse dois minutinhos, telefonou mais um pouco e, finalmente, nos mandou embora com ele.
Eram quase três da manhã, ela estava enregelada num uniforme bonitinho mas pouco adequado e, em nenhum momento, perdeu a esportiva. Não por cortesia mecânica, mas porque, visivelmente, gosta de ajudar. É uma espécie em extinção, a melhor tradução da sua adorável cidade, o fim de uma era.
O aeroporto está em obras, perdendo o
look Casablanca. Temo que, quando fique pronto e moderno, a Fernanda passe a ser um robô, como as tantas atendentes de balcões de informações que a gente encontra pelo mundo afora.
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Como uma moça encabulada que ninguém tira para dançar, Montevidéu se esconde entre o glamour de Punta del Este e o brilho de Buenos Aires, do outro lado do Prata. É pouco mais do que um simples adendo nos anúncios de viagens pela região, e até na internet, onde se achja de tudo, é difícil encontrar boas informações a seu respeito. No portal de turismo “mais completo do Uruguai”, por exemplo, há links para Punta del Este, Colônia e as estâncias de águas quentes. Sobre Montevidéu, nada.
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“Montevidéu é uma cidade de estuque e de cores vivas; de ruas longas e largas que sobem e descem colinas em linhas retas, com montes de fios de telégrafo e de telefone no alto, cruzadas por bondes implacáveis cujos motorneiros se divertem em tirar sons melancólicos de cornetas de chifre, chamando e respondendo uns aos outros com trinados altos e anasalados — uma cidade que vibra com o som dos cascos dos cavalos, uma cidade de lojas chiques e casas bem construídas, uma cidade de luxo e riqueza.”
A descrição do jornalista americano Theodore Child, publicada pela “Harper’s Monthly” em maio de 1891
(íntegra aqui), dá uma pista do que foi o apogeu da cidade nos seus tempos de ouro. Sua elegância se sustentava na pecuária e na exportação de carne: cerca de mil cabeças de gado eram abatidas diariamente na capital, mais de metade de toda a produção uruguaia da época.
Hoje é difícil imaginar como tanta sofisticação convivia lado a lado com a crueza dos abatedouros, mas muitas das “casas bem construídas” continuam de pé, ostentando vestígios dos antigos luxo e riqueza nas portas entalhadas, nos balcões de ferro trabalhado, nas clarabóias, nas esquadrias solidamente assentadas. Volta e meia uma charrete cruza as ruas de paralelepípedos da cidade velha, e traz de volta o barulho dos cascos dos cavalos.
As “cores vivas”, porém, estão desbotadas. O centro, que tenta se recuperar através da criação de museus e restaurantes, está empobrecido, precisando de um trato. Nem por isso é menos bonito. Há uma inegável dignidade em sua decadência elegante que, bem ou mal, salvou-se da especulação imobiliária.
Mesmo na cidade nova, com seus edifícios modernos e parques generosos, há um ritmo diferente no ar, como se Montevidéu existisse numa outra dimensão do tempo — mais antiga e mais descansada, mais humana e civilizada. As lojas fecham depois do almoço, os bancos funcionam das 13hs às 17hs, ninguém parece ter pressa. Nesta fatia meio congelada do tempo há pouca publicidade à vista, há cassinos que não perturbam ninguém e cafés onde, até hoje, se espera fumando.
É difícil dizer se o mundo esqueceu Montevidéu, ou vice-versa. Inteiramente na dela, a cidade vive à sua peculiaríssima maneira, envolvida num velho e incongruente manto de langor tropical.
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Eu sempre soube que a minha mãe é o máximo, mas agora é oficial: na segunda passada, ela ganhou o troféu de melhor nadadora masters do Brasil. Está com 80 anos e, no momento, prepara-se para o mundial da categoria, que acontece em junho, na Itália... :-)
(O Globo, Segundo Caderno, 20.5.2004)