13.5.04



As atribulações de uma Capivara literária

Seguidas, como não podia deixar de ser, pela opinião da colunista a respeito do caso "New York Times"


Há algumas semanas, no auge do auê criado por um desabafo em relação aos governadores que publiquei aqui, fui jantar com minha amiga Bia Corrêa do Lago. Bia é dona da editora Capivara — que, além de ter este nome tão bem escolhido, faz livros de arte deslumbrantes. Era a minha vez de desabafar.

— Taí , Bia: escrever crônica é divertido... mas, às vezes, é tão estressante! Bom mesmo é ter uma editora como a tua e levar uma vida civilizada, tranqüila, envolta em arte e beleza.

Bia literalmente saltou da cadeira.

— Vida tranqüila quem, cara-pálida, eu?! Mas se passei o ano brigando na Justiça por causa de um livro! A edição foi apreendida, fiquei quase maluca... e você chama isso de vida civilizada?!
Oops
— Qual foi o livro?

Por não saber da história, eu não estava preparada para a resposta. Sou do tempo em que livros eram apreendidos ou proibidos por desagradar à ditadura — como aconteceu, por coincidência, com um dos livros do pai da Bia, Rubem Fonseca: “Feliz Ano Novo” passou anos longe dos leitores porque um censor em Brasília achou que o público brasileiro não estava preparado para literatura tão contundente.

— O livro foi “O Aleijadinho e sua oficina”.

O livro sobre o Aleijadinho?! Mas o que diabos poderia haver naquele lindo livro que levasse à apreensão da edição?!

Resumindo a história, que já deu muito pano para as mangas — e, inclusive, já teve um final feliz — a Bia decidiu, um dia, produzir um catálogo das esculturas devocionais do Aleijadinho. Como a autoria de boa parte das peças é extremamente controvertida, chamou três especialistas acima de qualquer suspeita para determinar o que podia, na medida do possível, ser atribuído com certeza ao mestre mineiro.

A historiadora Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, o pesquisador Olinto Rodrigues dos Santos Filho e o restaurador Antônio Fernando Batista dos Santos passaram cerca de um ano estudando peças e a documentação existente. Chegaram a um grupo de 128 esculturas, magnificamente fotografadas por Henry Yu; o livro tem projeto gráfico de Victor Burton e uma introdução do Alexei Bueno que é uma pequena e primorosa aula de história da arte ao situar o Aleijadinho na sua época.

Acontece que, ao dividir as obras entre as que seriam do Aleijadinho, as que seriam dele e de sua oficina e as que seriam apenas de seus auxiliares, o livro despertou a ira de um colecionador paulista. Inconformado com o downgrade de uma escultura da sua coleção, e alegando graves prejuízos, ele conseguiu não só a apreensão da edição como segredo de Justiça. Quer dizer: não só a obra estava proibida, como não se podia falar no assunto!

Foi uma temporada tensa na Capivara. Os livros foram recolhidos, como criminosos, a um depósito que ninguém conseguia descobrir onde ficava; o processo consumiu tempo, nervos e dinheiro, mas, finalmente, um juiz sensato deu ganho de causa à editora. Os livros foram devolvidos e chegaram às livrarias.

Depois daquele jantar com a Bia, deixei de invejar a vida supostamente plácida dos editores de livros de arte. Saber que uma edição tão bem cuidada foi apreendida — vale dizer, censurada — só porque um colecionador de arte discorda da opinião de especialistas é uma das provas mais kafkianas que tive da fragilidade da liberdade de expressão.

Quando deixamos a livraria — sim, claro, estávamos jantando numa livraria — passei pelos livros ofendidos; era difícil imaginar a epopéia obscurantista que viveram ao vê-los tão sossegados e bonitos. Na porta, antes de sair, olhei para as prateleiras e para as estantes coloridas, ricas, variadas. Tive vontade de abraçar aqueles livros todos, tão diferentes entre si, e dizer-lhes, baixinho: “Bravo, companheiros, continuem na luta!”.

* * *

Por falar em obscurantismo: será que, em Brasília, ninguém pensa?! Ter um governo que cassa visto de jornalista porque não gostou do que leu já é bastante preocupante; mas mais preocupante ainda é a falta de inteligência que se nota por trás de uma medida dessas. A repercussão da ociosa e desastrada reportagem de Rohter não teve uma fração da repercussão que vai ter a notícia da sua expulsão do país — que, na seqüência, ainda vai amplificar o tema da bebida.

A diferença é que, enquanto Rohter nada conseguiu provar em relação aos hábitos etílicos do presidente, a atitude totalitária do governo brasileiro prova-se por si mesma.

Resultado: de vilão da história, Larry Rohter virou mártir da liberdade de expressão. Será que ele merece mesmo essa honra? E será que o “The New York Times”, que para sempre será lembrado como o jornal de Jayson Blair, ainda está com essa bola toda?


(O Globo, 13.5.2004)