6.5.04



Troque o seu gatinho por uma criança pobre

Depois de várias semanas de heavy metal, cronista decide dar um tempo e voltar aos quadrúpedes

Mais uma vez, a coluna não chega ser novidade para quem freqüenta o blog...
Enquanto trabalho, eles ficam aqui em volta, cada qual do seu jeito: Keaton em cima do computador, Netcat deitada no tapetinho debaixo da poltrona, Tati na cadeira de diretor ali ao lado, Lucas em cima da escrivaninha, Mosca e Tutu indo e vindo, Pipoca às vezes caçando um inseto, às vezes na janela, apreciando a noite.

Estou convencida de que os bigodes tão bonitinhos que têm são antenas que captam as vibrações do ambiente e da alma da gente. São solidários e companheiros, atentos e carinhosos. Às vezes, quando acham que estou concentrada demais no trabalho, dão pequenos puxões na minha roupa ou nos meus braços, as patinhas fechadas com grande cuidado para não machucar.

Apesar de lindos — e vaidosos! — eles sabem que beleza não é fundamental; fundamental mesmo é delicadeza, essa qualidade tão em falta na vida da gente.

* * *

Como muitos de vocês sabem, levo uma vida dupla. Não escrevo apenas no jornal, mas também num blog, isto é, uma espécie de diário que mantenho na internet, onde anoto idéias, comento uma coisa ou outra, mostro umas fotos. O textinho acima escrevi no domingo de madrugada quando, justamente, a Tati desceu da tal cadeira de diretor e veio dar uns puxões na minha roupa, pedindo atenção.

Foi um mix de observação do cotidiano com declaração de amor, uma daquelas coisas que a gente escreve sem qualquer pretensão, apenas para dividir com os amigos um momento de carinho; mas suscitou, pela enésima vez, a pergunta que nenhum dono de animal de estimação agüenta mais ouvir.

“Você tem um apreço muito grande pelos gatos, dos quais também gosto, tenho um, mas acho que, de sua parte e de tantas outras pessoas, há exagero”, escreveu um leitor. “Em vez de se ter tantos gatos, como você tem, por que não adotar uma criança sem-mãe-nem-pai? Não tenho nada com a sua vida, mas me preocupam — muito mais do que os gatos — as crianças que choram pelo carinho de alguém que possam chamar de mãe ou de pai — sobretudo de mãe. Em muitos casos, aliás, não se trata de escolher entre gatos ou criança, porque há condições financeiras e afetivas para se dedicar a um filhote humano, digamos assim, e ao mesmo tempo a um felino — para que ter seis, dez gatos?”

* * *

Desconfio muito da bondade e das boas intenções de quem questiona o amor aos animais, mas decidi responder ao leitor para esclarecer, de uma vez, o meu ponto de vista em relação ao assunto. Escrevi o seguinte:

Esta é uma pergunta clássica, feita por quem ou não tem animais ou não tem filhos; como você diz que tem um gato, suponho que não tenha filhos. É também uma pergunta muito difícil de responder, porque se a pessoa não percebe sozinha a diferença abissal entre uma criança e um animal de estimação fica complicadíssimo explicar — mas vou tentar.

Ninguém adota um filho porque tem um dinheirinho — ou um afetinho — sobrando, temporariamente desviados para quadrúpedes. Até porque ser um pai ou mãe responsável não é só pagar a escola e o pediatra e fazer um eventual carinho na criança ao chegar em casa; é se atirar de corpo e alma na construção de uma pessoa, ensinar, dar e mostrar exemplos, cuidar, levar e buscar na escola, no balé e no inglês, estar atenta ao que ela faz e com quem se relaciona, dar disciplina e compreensão nas doses certas, enfim... viver 24 horas por dia em função daquela criança.

É preciso ter uma imensa disponibilidade de tempo, paciência e carinho para ser pai ou mãe de verdade; para não falar em dinheiro.

Como eu disse, não dá para comparar filhos e bichos de estimação; mas, ficando só no lado prático da questão, ninguém precisa levar um gato à escola, conferir os seus deveres de casa, checar se escovou os dentes antes de ir para a cama ou, na adolescência, ir buscá-lo às quatro da manhã numa festinha do outro lado da cidade.

Inversamente, eu não poderia deixar uma criança sozinha durante todo o tempo que passo fora de casa, sobretudo quando viajo. Os gatos também não gostam muito dessas separações, é verdade, mas aceitam a situação resignados.

Quanto à pergunta dentro da pergunta (“para que ter seis, dez gatos?”) posso garantir, pelo menos nos casos que conheço, que ninguém decide ter seis, dez ou quinze gatos. Os gatos acontecem na vida de quem gosta deles. Um dia a tua filha chega da faculdade trazendo um gatinho que estava sendo maltratado no bar da esquina; no outro, o porteiro traz uma gatinha que foi abandonada em frente ao prédio, às portas da morte; ou a faxineira vem com uma siamesinha que nasceu na favela e que ela não tem condições de criar; ou...

Enfim. Há milhões de crianças em condições desesperadoras, é verdade, mas a situação dos animais não é nada melhor, pelo contrário.

Eu criei dois filhos maravilhosos, que se tornaram adultos cheios de qualidades e me enchem de orgulho; e dou guarida aos gatinhos que a vida teve a consideração — a delicadeza — de pôr no meu caminho.


(O Globo, Segundo Caderno, 6.5.2004)

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