25.12.04





Retrato de época

Circo Nerino, de Roger Avanzi e Verônica Tamaoki.
Editora Códex, 354 páginas, R$ 80


Houve um tempo, acreditem, em que não havia televisão; houve tempo, até, em que não havia sequer rádio ou cinema. As pessoas se distraíam lendo, contando histórias, fazendo a sua própria música. Iam ao teatro, quando havia teatro, e às apresentações das bandas nos coretos. Praticamente não havia cidade digna do nome sem uma banda e um coreto.

Mas a grande diversão, a festa que transformava a paisagem e alegrava os corações, era o circo. É difícil imaginar, no nosso mundo de entretenimento instantâneo e ininterrupto, o que representava a chegada do circo, sobretudo nas pequenas cidades do interior.

A verdade é que já não há espetáculo, por grandioso que seja, capaz de superar, em impacto, a presença alegre da lona, que atraía igualmente a todos. O circo era a quebra da rotina, o grande assunto, a mágica que superava a imaginação. Não era à toa que o palhaço era ladrão de mulher, e que tanta gente fugia com o circo.

Durante 52 anos, entre 1913 e 1964, utilizando todos os meios de transporte imagináveis, o Circo Nerino, "o mais querido do Brasil", viajou pelo país, armando a lona onde fosse possível, de largos e praças a terrenos baldios, passando até, em João Pessoa, por uma lagoa seca, abandonada pelos jacarés. Por precárias que fossem as instalações, porém, o público, fiel, garantia meses de aplauso, afeto e casa lotada.

Como tantos outros circos de cavalinhos, o Nerino nasceu da associação de meia dúzia de artistas, todos aparentados. Na época, circo ainda não era profissão que se aprendesse em escola especializada, mas destino de família; assim é que, pela árvore genealógica do Nerino, passam gerações de artistas, do palhaço Arrelia à atriz Renée de Vielmond. Licemar e Luciene Medeiros, da novíssima geração, nascidas já depois do Circo Nerino ter dobrado de vez sua lona, trabalham em Las Vegas, numa das equipes do Cirque du Soleil.

A vida era sonho... mas nem tanto

"Circo Nerino", de Roger Avanzi e Verônica Tamaoki, é a empolgante saga desta aventura de cinco décadas. No livro, primorosamente documentado, a história familiar, que se confunde com a própria história do circo, mistura-se aos acontecimentos do Brasil e do mundo.

Tudo é muito interessante, das viagens de navio no escuro, durante a Segunda Guerra, para evitar torpedos inimigos, ao final de uma seca no Ceará, em 1952, em que público e artistas abandonam o espetáculo para ir dançar, com alívio e prazer, debaixo da chuva que caía.

Roger Avanzi, de 82 anos, é filho de Nerino, de quem herdou ofício e personagem. Quando o pai ficou velho demais para fazer o palhaço Picolino, Roger, até então galã, virou Picolino II. Tomar a si a responsabilidade de assumir o papel principal do circo foi uma decisão delicada e difícil:

-- Nunca mais fui o mesmo, -- confessa. -- Talvez uma pessoa muito instruída, bastante sabida, consiga explicar essa transformação.

Felizmente Verônica Tamaoki, a quem se deve a extraordinária pesquisa e o belo texto de "Circo Nerino", sabe que certas coisas não se explicam. Equilibrista e malabarista, fundou a sua própria escola de circo em Salvador, a Escola Picolino, e criou o site www.pindoramacircus.arq.br, onde divulga notícias do picadeiro.

Da sua intimidade com o universo circense nasce muito do encanto deste livro, em que o velho Nerino volta à cena com suas alegrias e tristezas, tragédias e atos de heroísmo, romances e desgostos. A poesia algo melancólica com que tantos de nós teimamos em pintar os circos dá lugar a uma vida trepidante, cheia de trabalho árduo, problemas práticos e contas para pagar. Uma vida de sonhadores, com os pés solidamente plantados na corda bamba.

O livro não é bem um romance, não é só uma coleção de fotos ou apenas um conjunto de depoimentos; é um pouco disso tudo, e muito mais: "Desde o início, o livro assumiu a direção de sua criação", escreve Verônica, na apresentação. "Foi ele que nos dirigiu, não o contrário. E quando começou a mostrar sua cara, descobrimos que pertencia à aristocracia dos álbuns de fotografias dos circenses".


(O Globo, Prosa & Verso, 25.12.2004)

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