12.12.04



O que têm em comum o Almanaque Capivarol, a Internet e a Capívara da Lagoa?

Entre os vários emails que recebi a respeito do imbroglio da capivara, estava esta excelente "pensata" do Armando Antonio de Brito Neto. Achei muito curiosa a forma como ele interligou as idéias. Leiam, vale a pena!
Num mundo em que buscamos conceitos baseados na sensação de exatidão matemática e verdade científica é vital ressaltar, sempre que possível, o papel do etéreo, do invisível, do mágico, do acaso e do caos. A imaginação criadora, a fantasia e o inconsciente coletivo se misturam sempre, de forma imperceptível para os que são destreinados nas artes de contemplar, meditar e apreender.

A World Wide Web, a Internet como hoje a conhecemos, estará fazendo 15 anos. Entre os criadores da Internet estava o físico e matemático Tim Berners-Lee. Os pais de Tim também eram matemáticos e participaram da criação do primeiro computador comercial: o Mark I. Tim recebeu na infância a influência simultânea da matemática e da tradição cultural britânica, entre seus livros favoritos, estava um manual da era vitoriana chamado Enquire within upon Everything, que teve um famoso similar no Brasil, o Almanaque Capivarol, um breviário de dicas sobre quase tudo, um portal mágico de informações e conhecimentos.

Tim, sempre às voltas com seu Almanaque Capivarol, enfiou na cabeça a iéia de criar um Super Almanaque Capivarol através de uma linguagem de comunicação, um protocolo que permitisse que qualquer coisa pudesse, potencialmente, conectar-se com qualquer coisa onde estivesse depositado conhecimento­.

?Numa visão radical, o mundo pode ser visto apenas como conexões nada mais. Pensamos num dicionário como um repositório de sentidos, mas na verdade ele apenas define palavras em relação a outras. Há pouco sentido na idéia de sentido das coisas. 0 que há é uma estrutura das coisas e isso é tudo. Existem bilhões de neurônios em nosso cérebro, mas o que são neurônios? Apenas células. 0 cérebro não gera, ou produz conhecimento se não há conexões. Tudo o que sabemos e somos é apenas a conexão possível feita por nossos neurônios. 0 que importa são as conexões."

Tim foi o responsável pela escolha do nome de batismo da rede, ele escolheu uma expressão que os matemáticos usavam para significar um conjunto de nós e links compartidos planetariamente: World Wide Web, ou simplesmente web. Era 1990, e ninguém nem sequer imaginava como o novo Almanaque Capivarol mexeria com o planeta e como serviria para difundir novas idéias.

Aqui mesmo no Rio de Janeiro, às vésperas da Rio-92, Betinho e Carlos Afonso queriam fazer da Conferência uma oportunidade e um pretexto para abrir a Internet para a sociedade civil através de um nó na sede do Ibase, que deu origem a Alternex, nosso primeiro provedor de acesso.

O amor de Tim Berners-Lee pelo Enquire within upon Everything o levou a visualizar a construção de um gigantesco Almanaque Capivarol catalogando, ligando e disponibilizando-se os conhecimentos armanezados em todos os compútadores do mundo, filhotes dos computadores criados por seus pais.

Mas o que isto tem a ver com a capivara que tem provocado discórdia e controvérsias?

De um maneira sintética podemos dizer que a aparição de uma capivara na Praia de Ipanema é um fato cujo valor científico é zero, isto porque a ciência se ocupa, apenas, daqueles fenômenos regulares, frequentes, dos quais se podem abstrair as leis gerais do mundo natural. Sendo assim, se UMA capivara parece em Ipanema ela é uma notícia de jornal, mas não é um assunto de interesse da ciência, pois a ciência não se movimenta em direção ao que é excepcional, mas sim ao encontro do que é uma regra ou uma lei geral. Mas a capivara é um assunto de jornal, e de primeira página, exatamente por que o assunto o jornal é tudo aquilo que não é regra, é tudo aquilo que é excepcional, diferente, imprevisto e espetacular.

Jornal e Ciência são antagônicos neste particular: quanto mais excepcional ou raro é um fato, menos importância ele tem para a ciência e mais interesante é para os jornais.

No dia que tivermos dezenas de capivaras frequentando naturalmente a Lagoa Rodrigo de Freitas este assunto deixará de ser notícia de jornal, mas passará a despertar o interesse da ciência, que irá se ocupar em descobrir que condições proporcionaram este fenômeno.

Ocorre, no entanto, que o movimento ecológico ou ambientalista é feito através de ícones que são erigidos pela sociedade como representações simbólicas de preocupações conscientes e inconscientes de caráter geral, que servem de instrumento para a difusão de valores, conceitos e conhecimentos num processo de educação ambiental. Assim, se a capivara da Lagoa, do ponto de vista das ciências biológicas, não tem nenhum importância científica como indivíduo. Como representação simbólica de preocupações que permeiam o inconsciente coletivo ela é um indivíduo que pode ser usado para salvar milhares de outros como ela e se constitui em um instrumento de mudança social.

Neste sentido, para o que conhecemos como ciências humanas, ciências políticas ou ciências sociais, como queiram, o aparecimento da capivara é um acontecimento ambiental, que pode ser definido com um evento natural excepcional que desperta um amplo campo de debates e choques de discursos e de valores que representam todo o espectro do ideário ambiental e humanista. O acontecimento ambiental torna-se visível, como fato socialmente relevante, na medida em que desperta o amplo debate sobre os valores e as visões de mundo que devem prevalecer para interpretar o acontecimento ambiental e orientar a reação da sociedade diante dele.

No entanto, além e acima das diversas ciências e ideologias, existe o que é imaterial, o espírito humano...

Não seremos salvos pelo uso do bio-diesel e nem por células de hidrogênio, tão pouco seremos inapelavelmente extintos pela transposição do São Francisco ou pelo próximo erro ambiental do governo.

Seremos salvos ou condenados pelo melhor ou pelo pior que temos no espírito humano.

Eu creio, firmemente, que somos um pouco mais do que um amontoado de genes e substâncias químicas.

O amor infantil de Tim Berners-Lee pelo seu Almanaque Capivarol e que lhe serviu de inspiração para mudar o mundo é o mesmo amor de natureza revolucionária que a capivara da Lagoa desperta nas crianças -- e na criança que existe em cada um de nós.

É o tijolo fundamental da matéria que chamamos revolução socioambiental que se faz através de milhares e milhões de reflexões e conexões -- como as que fazemos e compartilhamos pela Internet de Tim Berners-Lee -- quando somos despertados do Sono da Ignorância por uma capivara em Ipanema e nos religamos uns aos outros, na consciência da humanidade e da causa comum.

Não menosprezem uma capivara, ela pode mudar uma criança -- e uma criança pode mudar o mundo. (Armando Antonio de Brito Neto)

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