16.12.04





Por que levaram a nossa capivara embora?!

Nada justifica a presssa com que os veterinários de Niterói desterraram a Capivara da Lagoa

Há duas correntes filosóficas em relação à Capivara da Lagoa. Uma acredita que uma capivara é uma capivara é uma capivara e que, francamente, já podíamos mudar de assunto. A outra vê na Capivara não só um bicho ligeiramente diferente dos seus pares, como um símbolo da própria Lagoa e, eventualmente, de um desejo de ternura que a nossa cidade ainda conserva, apesar dos pesares; uma espécie de pequena luz de carinho coletivo no fim do túnel da boçalidade geral.

À primeira corrente pertencem, basicamente, pessoas que não ligam para bichos e que nunca se encontraram com a Capivara num fim de tarde, bem como os veterinários do zoológico de Niterói. Esses notáveis facultativos demonstraram uma falta de sensibilidade comparável apenas à sua incompreensão do que seja um animal comunitário.

Acontece que a Capivara da Lagoa não é uma capivara qualquer, uma capivara genérica; é um bicho aculturado, manso, quase doméstico, que acha gente uma espécie amigável e não tem as manhas das suas primas selvagens; uma capivara que cresceu às margens da Rodrigo de Freitas, onde, ao contrário do que afirmam os que não a conhecem, estava muito bem adaptada. Lá passou quase dois anos saudável e tranqüila, sem chatear ninguém (exceto alguns cachorros), comendo o capim abundante das margens e alegrando a vida de quem a encontrava. Só precisava de companhia; mas isso, mais dia menos dia, se resolveria.

Tudo acabou quando deu o azar de pegar a comporta do canal do Leblon aberta. Como todo mundo viu, ela lutou o quanto pode. Escapou de morrer nas pedras do Arpoador e escapou de morrer afogada -- mas, infelizmente, não conseguiu escapar da precipitação dos veterinários que, da noite para o dia, sem consultar ninguém, sem tentar se informar das suas condições de vida e sem lhe dar ao menos a oportunidade de se refazer plenamente do trauma do "salvamento", decidiram soltá-la ao lado da refinaria de petróleo, numa área que é o paraíso de caçadores clandestinos.

Desde que a Capivara foi solta na Reduc, já ouvi toda a espécie de absurdo como justificativa, o principal deles sendo que a Lagoa seria poluída demais, inadequada demais para uma capivara. Como observou o leitor Paulo Zobaran, os veterinários de Niterói têm falado tão mal da Lagoa, e tão bem da Reduc, que chega a ser um espanto que a nossa dinâmica indústria imobiliária ainda não tenha despertado para o extraordinário potencial oferecido por aquela aprazível localidade de Duque de Caxias.

Com todo o respeito aos veterinários, porém, o que conta, para mim -- além da evidência do que vi e em parte documentei nos últimos dois anos -- é a opinião de Mário Moscatelli, que conheceu a Capivara no seu habitat urbano. Para quem não está ligando o nome à pessoa, ele é o biólogo que replantou o mangue às margens da Lagoa, sendo o grande responsável pelo seu renascimento.

Vivo na área há mais de 20 anos, conheci a Lagoa pré e pós-Mário Moscatelli, e posso garantir que ele fez a coisa mais próxima de um milagre que já vi na vida. Pois este especialista -- que, curiosamente, não foi ouvido em momento algum pelas "autoridades" que tão açodadamente decidiram o destino da Capivara -- acha que ela estava muito bem onde estava.

Se os níveis de poluição da Lagoa andassem ruins como dizem, ela não seria o animal saudável que é; nem se notaria, na região, o aumento da fauna que se tem verificado. Ao contrário dos "experts" de Niterói, o homem da Lagoa acha até que se poderia trazer mais capivaras para a Zona Sul. Ecoturismo, afinal, não é coisa só para a Amazônia.

-- As pessoas falam muito na Lagoa como paisagem, mas se esquecem que é um ecossistema -- diz Moscatelli. -- A capivara era a ponta mais visível deste ecossistema, uma espécie de "embaixadora da Lagoa". Graças a ela as pessoas passaram a prestar mais atenção na vegetação e nos outros bichos da área, passaram a ficar mais conscientes do meio ambiente e a fazer mais pressão sobre a Cedae para que acabe as obras de saneamento. A sua segurança não estava ameaçada lá, de forma alguma.

A convivência entre gente e bichos é normal numa cidade como o Rio: basta ver os miquinhos, os macacos, as cotias do Campo de Santana. A nossa Capivara seria provavelmente mais feliz se tivesse nascido e crescido no Pantanal, mas o papel que desempenhou na Lagoa foi infinitamente mais importante do que o de dúzias de capivaras escondidas em reservas. Em meio à violência do cotidiano, ela era um ponto de afeto, uma felicidade, um elo de ligação com a natureza.

Com seu ar altivo e seu jeito pacífico, as capivaras se acostumam bem com humanos -- embora não cheguem ao extremo de comer pizza, como supõe uma das especialistas de Niterói. Com toda a autoridade que o cargo lhe confere, esta senhora afirmou a um jornal que a Capivara da Lagoa era alimentada diariamente por um dos quiosques.

Então tá.

Vai ver, acredita também que ela pagava as refeições com ticket-restaurante.

(O Globo, Segundo Caderno, 16.12.2004)