Quando a arte É a vida
Volta e meia a gente se pega dizendo que a arte imita a vida. Ou o contrário. Ou qualquer coisa assim: uma figura de retórica à qual se recorre na falta de melhores idéias. Agora estou eu aqui embatucada há horas, sem saber como definir a sensação que tive ao assistir a Novas Diretrizes em Tempos de Paz, porque o que vi no palco não foi bem uma imitação da vida, mas antes a vida recontada -- e, para isso, não achei nenhum clichê que funcione.Explico. Um imigrante europeu chega ao Brasil em 1946. A guerra acabou na Europa, mas a burocracia ainda não transmitiu ao inspetor da imigração as novas diretrizes em tempos de paz. Para aquela repartição pública, o imigrante vem de um país inimigo, e depende única e exclusivamente do inspetor se poderá ou não ficar no país. O inspetor faz uma proposta a Clausewitz, o imigrante: se ele conseguir levá-lo às lágrimas com suas lembranças da guerra, pode ficar.
O detalhe é que, para criar Clausewitz, Bosco Brasil inspirou-se principalmente em duas pessoas: Ziembinski e meu pai. Como Ziembinski, Clausewitz é ator e vem da Polônia; como papai, aprendeu português antes de chegar aqui. Quando explica ao inspetor Segismundo (Tony Ramos, show) porque fala português, e o que pensa da língua, Clausewitz usa as palavras que meu pai escreveu em Como Aprendi o Português e Outras Aventuras -- e que tantas vezes ouvi ao longo da vida, quando ele contava como veio parar no Brasil.
Tem mais. Dan Stulbach, o fantástico ator que representa o imigrante, fez o dever de casa tão bem que, volta e meia, Bia e eu nos surpreendíamos com as semelhanças entre os dois. Que nem existem, a não ser pelas mãos expressivas, por um certo jeito de bondade e delicadeza e, diz a Bia, por algumas inflexões no sotaque. Eu não sei dizer: nunca reparei que meu pai tivesse sotaque. Nisso, aliás, tenho a mesma experiência do Dan, filho de imigrantes poloneses, que só se deu conta de que os pais não falam um português 100% castiço quando começou a ensaiar.
Assistir a este espetáculo foi uma experiência estranha, comovente e empolgante. Novas Diretrizes em Tempos de Paz é a melhor peça que vejo em muito, muito tempo. Que tenha soado tão familiar à Bia e a mim é um pequeno milagre que só nós podemos avaliar, mas a qualidade impecável do texto, da montagem e dos atores é tão evidente para todo mundo que, ontem, Tony e Dan foram aplaudidos de pé por uns dez minutos.
Tem sido assim sempre, todas as noites.
Em São Paulo, a peça concorre ao Prêmio Shell em três categorias: autor (Bosco Brasil), ator (Dan Stulbach) e iluminação (lindíssima, do Gianni Ratto). A lotação do teatro está praticamente esgotada até o fim da temporada, mas se vocês correrem talvez ainda consigam lugar: eles têm feito sessões extra sempre que podem.
Novas Diretrizes em Tempos de Paz, direção de Ariela Goldmann -- Quinta, sexta e sábado, 21h; domingo, 20h. R$ 25. Até 3 de novembro. Casa de Cultura Laura Alvim: Av. Vieira Souto 176, Ipanema, tel. 2247-6946.
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