Corra, Lula, corra! (II)
Quem conseguiu prestar atenção ao noticiário não relacionado às eleições durante a semana passada reparou que (para variar...) a Microsoft esteve em evidência ao longo do período. Na terça-feira, ela anunciou que o Smartphone 2002, seu sistema operacional para celulares, chega em breve ao mercado a bordo de um telefone chamado SPV (de Sound, Pictures, Video), distribuído pela operadora inglesa Orange. Por enquanto, o aparelho, que custa o equivalente a US$ 277 e é fabricado em Taiwan, será comercializado apenas no Reino Unido.O maior problema que a M$ enfrenta para conquistar o suculento mercado wireless é que as principais fabricantes de aparelhos (Nokia, Ericsson, Motorola, Samsung e Siemens) estão comprometidas com outro sistema operacional, o Symbian — um sistema aberto desenvolvido em joint-venture por elas, mais Matsushita (Panasonic), Psion e Sony Ericsson. A Samsung, única que não está diretamente envolvida com o Symbian, prometeu fabricar um celular usando o Smartphone 2002 — mas, até agora, não falou nem prazos, nem em protótipos.
Na quinta-feira, passado o burburinho do lançamento do Orange SPV, a M$ voltou a atacar, desta vez anunciando o lançamento da versão 8.0 do seu software de acesso à MSN, em parceria com a Disney, como provedora de conteúdo. O anúncio foi feito no Central Park, em Nova York, por Bill Gates e Michael Eisner, CEO da Disney — acompanhados de Mickey e Minnie. A idéia é capturar a maior fatia possível do público “família” da AOL, que anda passando por turbulências — e cuja nova versão de navegador (coincidentemente, também 8.0) é, para dizer o mínimo, complicada.
Mas a notícia Micro$oft mais bizarra de todas saiu mesmo do noticiário político, o campeão de audiência dos últimos meses. Também na quinta-feira, com a campanha presidencial ainda em aberto, Bill Gates mandou um de seus representantes convidar Lula para um bate-papo, ao qual estariam presentes também diretores da Intel, da AMD e da HP-Compaq.
“A intenção — dizia a notícia da GloboNews.com — seria discutir sobre projetos de alta tecnologia e possibilidades de investimentos de empresas estrangeiras no Brasil.”
Ahã. Então tá. Vamos até fazer de conta que não reparamos na monstruosa gafe diplomática de Bill Gates de se adiantar à vontade popular brasileira expressa nas urnas. Mas não vamos, pelamordedeus, dormir no ponto! As intenções de Bill Gates são sempre as melhores possíveis... para a Micro$oft.
Ninguém precisa de bola de cristal para saber o que ele queria com Lula. Uma das principais tarefas “digitais” do novo governo é a aplicação dos recursos do Fust para a informatização de escolas e órgãos públicos. Estamos falando numa quantia de R$ 1,5 bilhão, parte da qual só não foi direto para a M$ graças aos esforços dos deputados Walter Pinheiro, do PT, e Sergio Miranda, do PCdoB, que conseguiram, a tempo, embargar a versão original do projeto. Defendida com grande vigor pelo Ministério da Educação (sobretudo depois da visita de Steve Ballmer ao Brasil), ela previa o uso exclusivo do Windows em todas as máquinas.
Nada contra o diálogo com Mr. Gates. Acho, aliás, importantíssimo que o presidente da República converse, e muito, com o povo da área tecnológica. Agora, sinceramente, considerando-se a real natureza da proposta — a M$ não quer gastar dinheiro com o Brasil, quer ganhar dinheiro — ou alguém tem alguma dúvida a respeito disso? — cabe a Mr. Gates pegar seu aviãozinho, dar carona aos amigos e vir se encontrar com o cliente.
(O GLOBO, 28.10.2002)
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