2.1.11

Pipoca, a siamesinha discreta



Descobrimos que havia algo errado com a Pipoca em setembro: ela estava com uma espécie de verruga na gengiva. Era câncer. Chegou a ser operada duas vezes, mas a doença ganhou a batalha no dia 29; ela estava com quase 17 anos.

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Pipoca nasceu na favela. Seus irmãos foram maltratados e mortos e a Antônia, faxineira que até hoje trabalha para a Laura, trouxe-a para cá para que eu achasse um bom dono para ela. Pipoca, porém, apesar de pequenina, tinha outras idéias, e achou que a casa lhe convinha perfeitamente.


O nome foi escolhido por óbvio: como todo filhote de siamês, era quase branca, com pontinhas marrons aqui e ali, tal qual uma pipoca. E, como todo filhote em geral, pulava sem parar.

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Ao contrário das pessoas, todo bicho é boa gente; mas Pipoca (que também atendia por Pips ou Poca) era excepcional. Era absolutamente do bem, uma das criaturas mais amáveis e discretas que já conheci. Dava-se bem com todos, bípedes ou quadrúpedes -- mas, depois de adulta, gostava sobretudo de ficar na dela, observando o mundo pela janela, sempre séria e imersa em pensamentos. 


Nos dias frios, quando os gatos se deitam todos juntos para ficarem quentinhos, grudava invariavelmente no Lucas: acho que, com toda a diferença de tamanho -- ele é o maior gato da casa, ela era a menor -- reconheciam a semelhança que havia entre ambos. E, nos dias em que a Pipoca já estava no fim, o Lucas a tratou com particular carinho, deitando-se com frequência ao seu lado e ajudando-a a se limpar, coisa que para ela era cada vez mais difíicil.

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Além do Lucas, Pipoca adorava Mamãe, seu bípede predileto. Assim que ouvia sua voz, saía de onde quer que estivesse, esperava que ela se sentasse e pulava no seu colo. Com um detalhe: Pipoca quase nunca sentava ou deitava no colo: ficava em pé, o que não era propriamente confortável para ninguém -- mas ela tinha o seu jeito de fazer as coisas, e pronto. 

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P
ips era um gato com truque, e tinha orgulho disso. Não sei como aconteceu, mas um dia descobri que, se a gente dissesse "Pipoca, cai", ela caía. Em recompensa pelo show, exigia uma dose extra de carinho. "Cair", portanto, virou sinônimo para "quero carinho" -- e funcionava em mão dupla. Às vezes eu nem precisava dizer nada para que ela "caísse" na minha frente (mais ou menos como o Tiziu faz, quando percebe que trocamos de roupa para sair; acho que aprendeu com ela).

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D
urante todos esses anos, a primeira coisa que eu via, ao acordar, era a carinha dela, vesga, vesga, colada no meu focinho. Não sei como adivinhava que eu ia abrir os olhos; mas o fato é que lá estava assim que os abria, sempre, conferindo, com a seriedade que lhe era peculiar, se eu estava mesmo acordando nos conformes. Às vezes eu sentia os seus bigodes me roçando o nariz e sabia, por isso, que já tinha acordado, embora ainda me achasse dormindo.


Tem sido difícil acordar sem certeza desde que ela foi embora.

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