23.12.10

Livros para o Natal II




  
No dia 6 de junho de 1944, na primeira leva de assalto das tropas aliadas à praia de Omaha, na Normandia – o famoso “Dia D”, da Segunda Guerra Mundial – estava o fotógrafo Robert Capa, carregando o seu armamento habitual: duas câmeras Contax, vários rolos de filme, muita valentia e talento de sobra. Apesar das condições desfavoráveis (para dizer pouco), ele conseguiu fazer mais de cem fotos da histórica invasão.

O material foi enviado para Londres onde, no laboratório da revista Life, um assistente se descuidou, e destruiu a emulsão dos filmes. Salvaram-se apenas oito fotos borradas, publicadas pela revista com uma legenda que explicava que estavam “ligeiramente fora de foco” porque as mãos do fotógrafo tremiam diante da intensidade do combate.

Capa, veterano de outras batalhas, nunca engoliu a desfeita, e quando publicou suas memórias da Segunda Guerra, deu-lhes o título “Ligeiramente fora de foco”. É este livro precioso que acaba de chegar às livrarias, bem a tempo de ser um dos melhores presentes da temporada. A tradução é de José Rubens Siqueira, e a edição é da Cosacnaify (o sonho secreto de todo livro).

Robert Capa, que nasceu em Budapeste como Endré Friedmann, inventou o alter ego para poder se vender melhor em Paris: como agente do “famoso Capa”, sentia-se mais à vontade para elogiar o próprio trabalho. Sua primeira ambição, contudo, não era ser fotógrafo, e sim escritor. “Ligeiramente fora de foco” prova que não lhe faltava base para tanto: o livro é ao mesmo tempo terno e espirituoso, alternando os horrores do campo de batalha com as aventuras galantes do moço que não via motivo para acordar de manhã se não houvesse uma boa guerra nas vizinhanças.

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“Contos húngaros”, um pequeno volume da Hedra, dá uma pista de onde vem o estilo agridoce de Robert Capa: nele estão reunidos dez contos inéditos de quatro dos principais autores húngaros, nomes que Capa com toda a certeza conhecia: Gyula Krúdy, Deszö Kosztolányi, Géza Csáth e Frigyes Karinthy. O livrinho de bolso não faz vista, é miúdo e barato, mas o que lhe falta em imponência sobra em conteúdo: ele tem até uma introdução do expert Nelson Ascher, que apresenta os autores e o contexto em que viveram. 

A Hungria é um país pequeno, mas dado a produzir escritores de primeira grandeza; infelizmente, suas obras poucas vezes chegam a transpor as barreiras do idioma. Angustiado com isso, meu Pai passou parte da vida traduzindo para o português o trabalho dos seus conterrâneos. Essa nova antologia (dedicada, aliás, à sua memória), existe graças a um outro Paulo, o Paulo Schiller -- que, para nossa sorte, não só sabe traduzir do húngaro, como, ainda por cima, o faz muito bem.

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Outra sugestão de livro de contos: o esplêndido “Em outros quartos, outras surpresas”, do paquistanês Daniyal Mueenuddin (Companhia das Letras, tradução de Sonia Moreira). As oito histórias do volume são entrelaçadas em torno do patriarca K.K. Harouni, um senhor feudal do século XX. Elas são protagonizadas ora por sua família, ora por seus empregados, amigos ou agregados, mas, com tudo o que têm de distante e exótico, formam um mosaico estranhamente familiar a um país onde o coronelismo continua dando as cartas.

Não há personagens “bonzinhos” no mundo de Mueenuddin. Bem ou mal, todos lutam para tirar de uma existência dura ou tediosa o melhor que podem, o que abre para o leitor o vasto leque das fraquezas humanas. Como é natural, todos querem subir na vida, e mesmo o poderoso K.K. Harouni tem sonhos de grandeza; o fracasso e a desilusão, porém, rondam com igual tenacidade ricos e pobres, homens e mulheres. A felicidade faz algumas pontas, mas seu papel é sempre breve e passageiro. Mueenuddin tem uma escrita elegante e sutil. “Em outros quartos, outras surpresas” está longe de ser um livro alegre, mas a sensação predominante deixada pela sua leitura é a de uma imensa, ainda que amarga, delicadeza.

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E por falar em contos, especialmente em contos entrelaçados – não dá para deixar “Entre assassinatos”, de Aravind Adiga (Nova Fronteira, tradução de Diego Alfaro), de fora da lista de bons livros para o Natal. Por algum motivo, um artigo caiu do original em inglês, “Between the assassinations” – mas o detalhe é importante, porque os assassinatos aos quais o título se refere são específicos: os de Indira Gandhi, em 1984, e o de seu filho Rajiv, em 1991. Trata-se, pois, de uma passagem de tempo bem marcada, que termina exatamente antes da abertura econômica do país e da sua conseqüente “globalização”.

Aravind Adiga é o autor de “O tigre branco”, que foi, para mim e para muita gente, o melhor livro do ano passado. A pergunta do fã-clube é óbvia: o novo livro é melhor do que o anterior? A resposta é complicada. Para começo de conversa, é impossível compará-los, de diferentes que são. E o anterior é, na verdade, posterior. Os contos foram escritos antes do romance, e imagino até que faria mais sentido ler os dois nessa ordem.

“Entre assassinatos” é uma série de histórias sobre os habitantes de uma cidade fictícia chamada Kittur. Eles são pessoas de todas as religiões, castas e faixas sociais. O estilo contundente de “O tigre branco” e o seu senso de humor inesperado estão presentes também neste livro, tecido com o esmero de uma grande e bela tapeçaria. Aravind Adiga não tem qualquer condescendência para com as enormes desigualdades sociais de seu país, e frequentemente escreve com indignação -- mas não perde a ternura jamais.


(O Globo, Segundo Caderno, 23.12.2010) 

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