20.5.10

É crime, é insuportável... e daí?



Férias na Itália. Tínhamos um carro, uma pequena coleção de guias de viagem e dias lindos. Planejávamos o ir e vir sem grandes cuidados, mas calculando sempre, na medida do possível, chegar à próxima localidade enquanto ainda estivesse claro. Um dia, distraídos pelas muitas cidadezinhas e vistas do caminho, perdemos o horário. Passados tantos anos, já nem me lembro de onde paramos, mas não me esqueço da fome que sentimos: às dez da noite, os restaurantes ainda abertos não aceitavam mais clientes.

Fizemos uma longa busca infrutífera xingando a moeda forte, as leis trabalhistas e os sindicatos que tornavam proibitiva a contratação de funcionários depois de determinado horário. Quando regressamos ao hotel, ainda cuspindo marimbondo, o gerente pôs os pingos nos ii: não era por causa dos motivos da nossa indignação que os restaurantes fechavam cedo, mas por causa da lei do silêncio. Nos pequenos prédios e casas vizinhos aos estabelecimentos comerciais moravam pessoas físicas, que tinham o direito de dormir. Depois da lição de civismo, botamos a viola no saco e terminamos a noite com as porcarias pouco nutritivas do frigobar.

Foi impossível deixar de pensar nisso numa semana marcada por dois atos de covardia praticados por energúmenos que, não contentes em impedir o sono dos justos, ainda se julgam no direito de agredi-los por se queixarem. Vocês viram, não é? Em Brasília, um militar foi atacado por um bando de marginais porque ousou reclamar da zorra que faziam no posto em frente à sua casa; em Niterói, o asqueroso vereador Luiz Carlos Gallo caiu de socos em cima do apavorado porteiro do seu edifício e da síndica de 61 anos, depois de reclamações contra o barulho de uma festa infantil (!). Não chamo o vereador de asqueroso por simples implicância; chamo porque foi a única descrição que encontrei para a desagradabilíssima figura que estampou os jornais.

Tenho pena do porteiro, da síndica e de todos os vizinhos obrigados a conviver com tal criatura, para não falar nas crianças que participaram da festinha e receberam tão mau exemplo.

O pior é que, embora extremos, esses casos sequer chegam a surpreender. Na cultura da boçalidade que assola o país, ser delinqüente é mais do que comum; é o padrão estimulado por autoridades e bacanas, dia e noite, sete dias por semana. Incomum, lamentavelmente, é encontrar quem ainda tenha capacidade de reagir e de lutar pelo que é direito. A atitude não compensa. Além do risco de enfrentar os canalhas que se julgam donos do pedaço, não adianta nada. No caso, parece que paz e sossego são apenas aspirações da sociedade, e não estão na pauta do governo.

Vejam o caso da leitora que me escreveu em desespero de causa, e que nem ao menos pediu anonimato; eu é que não tenho coragem de expô-la à sanha da vizinhança, embora torça para que alguma autoridade do bem, se é que isso existe, tome as suas dores e as devidas providências.

“Moro na Rua Sá Ferreira, em Copacabana, e o bloco dos fundos do meu prédio dá para Rua Saint Romain, que durante muitos anos teve lindas mansões. Com o passar dos anos, essas mansões foram subdivididas em diversos cômodos, e suas garagens tornaram-se oficinas e bares. Na garagem do número 108, foi aberto, há coisa de um ano, um bar chamado Recanto do Vinho. Fica em frente a meu apartamento e não sei se o problema maior é o inferno em que estou vivo dentro de minha própria casa ou o descaso e a falta de compromisso das autoridades, com quem já falei até pessoalmente.

Não posso mais receber amigos, assistir televisão, falar ao telefone ou ler um livro. Em quase 300 m2, fico confinada num quarto com a porta fechada e o ar condicionado ligado, desde o momento em que o bar é aberto e a música ativada. Isso se estende muitas vezes durante sete, oito, até onze horas consecutivas e ininterruptas.

Escrevi para a Ouvidoria da Secretaria de Ordem Pública e tenho cópia de pelo menos 18 registros, mas a Ouvidoria da Secretaria de Ordem Pública é surda! Fui a reuniões da Associação de Moradores da Rua Sá Ferreira e estive com o Secretario Bethlem em uma reunião na Faculdade Estácio de Sá, onde pedi providências com relação ao bar. Na ocasião, entreguei a ele cópias de todos os registros das reclamações que fiz à Ouvidoria. Expliquei o que está acontecendo e, na frente de um auditório lotado, ele se comprometeu a repassar o material ao seu substituto, Sr. Alexandre Vieira, para que fossem tomadas as devidas providências, numa ação conjunta com a UPP instalada no Pavão-Pavãozinho.

Adiantou? Que nada. Mesmo depois disso, o bar, que é ilegal e não tem alvará, continua aberto. Ainda escrevi algumas vezes para a “Ouvidoria Surda”, bem como para a Presidente da Associação de Moradores, mas cansei. Como disse antes, não sei o que é pior – se o que venho passando ou o desrespeito com que sou tratada como cidadã.

Meus vizinhos, salvo raríssimas exceções, não se manifestam, considerando a localização do problema. Aprendi com meu saudoso professor Darcy Ribeiro, porém, que nada é pior do que o sentimento de impotência, de não poder fazer nada. Como ele, nunca deixarei de me indignar com o que não é correto.”

Em tempo: “Perturbação do trabalho ou do sossego alheios” é crime, de acordo com o art. 42 do Decreto-Lei 3688/41 (Lei das contravenções penais).


(O Globo, Segundo Caderno, 20.05.2010)

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