21.8.08


São Francisco: anotações de viagem


Durante muitos e muitos anos, São Francisco foi a minha cidade nos Estados Unidos, e não só por ser a porta de entrada para o Vale do Silício, que eu visitava pelo menos uma ou duas vezes a cada seis meses. Havia em São Francisco, pequena e “andável”, uma natural sensação de cumplicidade entre as pessoas, já que aquela era a cidade de escolha de quem, por um motivo ou outro, não se sentia à vontade no resto do país: beatniks, hippies, gays, excêntricos em geral, estrangeiros de toda a parte. A sensação de exclusão alhures contribuía para uma aceitação quase latina do outro, para um nível de intimidade entre estranhos impensável num país anglo-saxâo. Ainda que, desconfio, isso acontecesse mais para manter vivo o folclore local, a verdade é que esse era um bom folclore, que gerava vibrações positivas.

Peguei muitas caronas de completos desconhecidos que se desviavam do seu caminho apenas para fazer a gentileza de me deixar aonde eu ia; fiz um dos passeios inesquecíveis da minha vida na garupa de uma Harley enorme depois de parar para admirar as motos de um grupo de Hell´s Angels barbudos, de meia-idade e braços cobertos de tatuagens. Não sei se, em qualquer outro lugar do mundo, teria parado para conversar com grupo semelhante, mas em São Francisco tudo me parecia perfeitamente natural. Fiz incontáveis perguntas sobre as motos, que foram respondidas com gentileza e paciência; no fim, um dos fofos se ofereceu para dar uma volta comigo.

E por que não? O dia estava lindo. Rodamos São Francisco toda, atravessamos a ponte e fizemos a volta em Sausalito. A moto era um escândalo de potente e confortável, e o meu mais novo amigo de infância, apesar da indisfarçável paixão pela velocidade, pilotava com uma segurança incrível. Nunca quis ter moto, tenho medo de motos como meio de transporte mas, até hoje, me lembro desse passeio como algo mágico, e guardei um lugar especial no coração para as Harleys e os Hell’s Angels.

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São Francisco, de onde voltei domingo, guarda muito pouco da cidade que me conquistou. Continua linda, cresceu sem se descaracterizar excessivamente, mas foi vítima do desenvolvimento da tecnologia (que transformou de maneira radical o perfil dos seus habitantes) e, como tantos bons lugares dos Estados Unidos, do 11 de setembro e da cultura do medo propagada pela gang de Bush. Não acredito que, hoje, qualquer pessoa me oferecesse carona, como nos velhos tempos, mas vai ser difícil tirar a dúvida. O país está tão maluco e paranóico que eu é que, agora, jamais aceitaria carona de um americano desconhecido. É curioso que nos motoqueiros grisalhos continuo confiando, mas infelizmente tornei-me um bípede traumatizado com motos, com um joelho que uiva sempre que se aproxima de um motor sobre duas rodas.

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Também já gostei mais de Chinatown, antes mais autêntica e fonte quase exclusiva de mil e um produtos que não se encontravam fora da Ásia. Com a globalização, muitos desses produtos se acham a preços vis em qualquer lugar. Ainda há muito o que ver por lá, mas é preciso ter paciência de Jó para descobrir algo que preste por trás das pilhas de artigos ordinários, lembranças de São Francisco, dragões e budas de plástico, chaveiros, cinzeiros, abridores de garrafa, leques vagabundos, camisetas a um dólar, trecos dourados, sedas baratas e uma quantidade tal de quinquilharias que quase impede a circulação pelas lojas.

Antigamente, a única alternativa local a esse comércio exasperante eram os antiquários, mas minha relação com eles era, e continua sendo, platônica, dados os preços impraticáveis. Felizmente, a ficha de alguns comerciantes começa a cair, e já há duas ou três lojas com estoque diferenciado e bonito, arrumado com capricho, para aqueles fregueses que, embora não tenham cacife para gastar em antiguidades, também não têm paciência com a tralha de quinta dos seus vizinhos. Minha descoberta da vez foi uma loja chamada Asian Image, que tem papéis, aquarelas, cerâmica pintada à mão, livros de arte. Tão boa, que nem parece estar em Chinatown.

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Por falar em lojas de São Francisco, uma das minhas favoritas absolutas é a Gump’s, de Post Street, cheia de personalidade e atitude. Fico feliz vendo que não mudou nada nos mais de 20 anos em que a conheço; não tem filiais, não faz parte de rede alguma e consegue misturar clássicos ocidentais com um sabor oriental único. É uma rara sobrevivente num mundo em que, mais e mais, as mesmas lojas e marcas encontram-se em qualquer shopping center globalizado. Para ir à Gump’s e curtir o gosto peculiar dos seus compradores e a originalidade do que lá está reunido, é preciso ir a São Francisco. Ao contrário das biroscas de Chinatown, repetidas da Avenida Copacabana ao Paraguai, a Gump’s é um daqueles empórios clássicos em que o freguês é sempre tratado com desvelo, mesmo que não compre nada. Seus preços nem são tão altos; a mercadoria é que é fora do comum, e o fora do comum raramente é barato.

Embora seja parada obrigatória para mim sempre que vou para aquelas bandas, não tenho muita coisa de lá. Não gosto de carregar pacotes complicados em viagem, mas dessa vez não resisti e comprei um biombo de papel de arroz até levinho mas que, uma vez empacotado, ficou mais alto do que eu e deu uma mão de obra danada: mal coube no taxi, foi complicado de despachar e, uma vez aqui, só entrou numa Doblô com os bancos de trás deitados. Fiquei à mercê de carregadores e do respeito da companhia aérea às muitas etiquetas de “Frágil!” que colei na embalagem, e nem preciso dizer que virei alvo instantâneo da aduana, que quis, compreensivelmente, ver o que era aquele trambolho.

E sabem o quê? Cheguei à conclusão de que viagem da qual se volta com a maleta de mão é o que há de prático, mas viagem da qual se traz um pedaço do mundo é uma aventura que não tem preço.


(O Globo, Segundo Caderno, 21.8.2008)

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