29.10.06

Dois poemas de Jorge de Sena

GENESIS

De mim não falo mais: não quero nada.
De Deus não falo: não tem outro abrigo.
Não falarei também do mundo antigo,
pois nasce e morre em cada madrugada.

Nem de existir, que é a vida atraiçoada,
para sentir o tempo andar comigo;
nem de viver, que é liberdade errada,
e foge todo o Amor quando o persigo.

Por mais justiça... -- Ai quantos que eram novos
em vão a esperaram porque nunca a viram!
E a eternidade... Ó transfusão dos povos!

Não há verdade: o mundo não a esconde.
Tudo se vê: só se não sabe aonde.
Mortais ou imortais, todos mentiram.

(1946)



FIDELIDADE

Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como outra solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?

Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.

(1958)


O português Jorge de Sena é dos meus poetas favoritos. Apesar de ser hoje reconhecido como um dos grandes intelectuais portugueses do século XX, continua pouco conhecido do grande público; penso se já não estaria esquecido sem o esforço sobre-humano de sua viúva Mécia em divulgar-lhe a obra.

Sena cometeu o pecado imperdoável de ser um homem que, a vida inteira, pensou com a própria cabeça. Pagou caro por isso; andou a vida exilado, inclusive no Brasil, e morreu longe da sua terra.

Pois fui visitar o blog da Meg, fada madrinha da blogosfera brasileira, e lá encontrei essas duas jóias. A gente sempre pode contar com ela: lá só se encontra coisa fina.

Obrigada, querida Meg, por me trazer à lembrança esses versos extraordinários!

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