27.1.11

Toró, o resgatinho




A minha idéia não era adotar ninguém; era só dar uma olhada na feirinha de cães e gatos resgatados das enchentes, para ver o encontro entre bichos carentes e bípedes de bom coração, sempre um lindo momento. Além disso, uma feirinha de animais que teve divulgação nos jornais e na televisão podia até dar uma crônica, quem sabe?

De modo que, no sábado, combinei com a Bia e com o Sérgio de irmos no dia seguinte ao Parcão.  Os dois passaram aqui em casa, e lá fomos nós, basicamente atravessar a rua.

-- Você está pensando em adotar alguém? – perguntou a Bia, no caminho.

-- Não, só quero olhar, mesmo. Ainda sinto muito a falta da Pipoca, que também foi um abalo na vidinha dos gatos. Eles estão reestruturando a hierarquia familiar, e acho que se entrar alguém agora são capazes de ficar muito tensos.

-- Ahã, -- disse a Bia, e não consegui perceber se ela estava concordando comigo ou zombando de mim.

* * *

A feirinha estava bombando.  Havia uma multidão, dezenas de pessoas fotografando e sendo fotografadas, muita gente entrando com doações e saindo com bichos nos braços na maior alegria, autêntico clima de festa. 

Os cães, em geral, estavam contentes com a atenção e com os carinhos recebidos. Já a meia dúzia de gatos que restava estava em estado de choque. Gatos detestam ficar em gaiolas, não simpatizam com cachorros e odeiam multidões; imaginem o triplo estresse!

No meio da confusão toda, porém, um frajolinha permanecia calmo e alerta, entretido com um prato de ração. Olhei para ele, chamei, e ele me olhou de volta com um olhar castanho e inteligente. Pedi ao Tony, que cuidava das gaiolas, para me deixar pegá-lo um pouco. Ele veio para o colo sem criar caso, e ronronou quando fiz carinho.

Amor à primeira vista acontece.

A Roseli me emprestou uma caixa de transporte, e levei o gatinho.

-- Eu sabia que isso ia acontecer, -- disse a Bia, e tenho a impressão de que estava feliz.

-- Ele podia ter um nome que fizesse referência às suas origens, -- sugeriu o Sérgio.

No caminho entre a feirinha e a nossa casa fomos pensando em várias alternativas, mas nenhuma funcionava bem. Assim que entramos, me veio o estalo:

-- Toró!

-- Ótimo nome! – disseram a Bia e o Sérgio, em uníssono.

* * *

Quando nos viram chegar com ele, os membros mais velhos da Famiglia me lançaram aquele olhar entre o desdém e a impaciência de quem diz “Ah não, vai começar tudo de novo!”; os mais novinhos, que nunca viram gato estranho na casa, reagiram mal. Tiziu ficou melancólico e amargurado, no fundo do poço; Matilda, furibunda, escondeu-se num grande tubo de brinquedo, e recusou-se a pôr o focinho de fora. Quando tentei uma festinha, fez “fuuuuuu!” para a minha mão, que estava com o cheiro do renegado.

* * *

Apresentei o novo membro da Famiglia no blog, e muita gente escreveu que o Toró ganhou na mega-sena felina; já eu penso o contrário, penso que, mais uma vez, tirei um bilhete premiado. Nunca dou sorte com loterias de verdade mas, em compensação, sou escolhida pelos melhores gatos do mundo. Ainda é cedo para que se saiba exatamente quem é o Toró, mas já dá para adiantar que é um gatinho singularmente bem-humorado e carinhoso.


Depois da visita do Allecx, ele foi liberado do banheiro e, imediatamente, sentiu-se em casa. Não saiu desconfiado pelos cantos, cheirando tudo, como seria normal; veio direto para o meu colo. Ainda fica meio aflito quando me perde de vista, mas pisa o chão como se fosse dele. E é.

* * *

Escrevo na terça à noite. Lucas e Keaton já não ligam muito para a presença do Toró. Tutu está escondida desde que ele chegou, mas como detesta gatos, essa reação era esperada; Lolinha já se aproxima, nem que seja para riscar fósforos; e Tiziu e Matilda continuam mais ou menos no mesmo estado de espírito.

Isso passa.

* * *

E, como o ano é novo e a vida também, voltei para a academia. Sou daquelas pessoas que, como diz o Riq Freire, subsidiam a malhação alheia: pago as mensalidades pontualmente... e nunca apareço. Agora, em vez de ir para uma academia grande, resolvi ir para uma miúda, chamada NB Fit, escondida ao lado de uma Body Tech.

-- E aí, está gostando? – perguntou a Kati, autora da descoberta.

Bom, “gostar” não é exatamente o verbo que eu usaria em relação a uma academia, mas estou me acostumando e, sobretudo, aprecio o esforço de todos em tentar me pôr nos trilhos, da recepcionista, que telefona para lembrar que tenho encontro marcado com os meus músculos, aos professores, que tentam tornar o encontro possível.

Pois ontem faltou Net em Ipanema, e em vez de fazer esteira assistindo ao Discovery, usei o iPhone. Passei quase dez minutos escutando músicas soltas, mas nenhuma me motivava a ir em frente, porque elas acabavam e eu tinha que continuar. Resolvi então escolher o repertório pela duração. Achei o Concerto para Piano e Orquestra № 5, de Beethoven, o “Imperador”, que não ouvia há séculos, e que na gravação que carrego comigo tem 20m29 no primeiro movimento, 8m04 no segundo e 10m18 no terceiro. Foi tiro e queda. Eu não me lembrava mais de como é maravilhoso esse concerto e, empolgada, fui aumentando a velocidade da esteira.

-- Então Beethoven compunha como um deus e você quer andar nesse passo de tartaruga? Maurizio Pollini dá um show desses e você vai ficar aí se arrastando? Vamos, vamos!

Está provado: a música é realmente a consolação dos aflitos. 


(O Globo, Segundo Caderno, 27.1.2011)

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