Vocês já leram parte da coluna de hoje: com ligeiras modificações, é o texto que escrevi sobre a Pipoquinha. O trecho inédito está abaixo do bloco de estrelinhas duplo. A foto publicada no jornal foi o retrato dela que usei aqui; para ilustrar a crônica do blog, fiz uma seleção de fotos dos dois pivetinhos, assim que vieram para cá.
Descobrimos que havia algo errado com a Pipoca em setembro: ela estava com uma espécie de verruga na gengiva. Era câncer. Chegou a ser operada duas vezes, mas a doença ganhou a batalha no dia 29; minha gatinha estava com quase 17 anos.
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Pipoca nasceu na favela. Seus irmãos foram maltratados e mortos e a Antônia, que até hoje trabalha com a Laura, trouxe-a para cá para que eu lhe arrumasse dono. Apesar de pequenina, Pipoca tinha, porém, outras idéias, e achou que a casa lhe convinha perfeitamente.
O nome foi escolhido por óbvio. Como todo filhote em geral, pulava sem parar; e como todo filhote de siamês, era quase branca, com pontinhas marrons aqui e ali, tal qual uma pipoca.
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Ao contrário das pessoas, todo bicho é boa gente; mas Pipoca (que também atendia por Pips ou por Poca) era excepcional, absolutamente do bem, uma das criaturas mais amáveis e discretas que já conheci. Dava-se com todos, bípedes ou quadrúpedes -- mas, depois de adulta, gostava sobretudo de ficar na dela, observando o mundo pela janela, sempre séria e imersa em pensamentos.
Nos dias frios, quando os gatos se deitam todos juntos para ficarem quentinhos, grudava no Lucas, o outro siamês da casa: acho que, com toda a diferença de tamanho -- ele é o maior gato da casa, ela era a menor -- reconheciam a semelhança que existia entre eles. E, nos dias em que a Pipoca já estava no fim, o Lucas a tratou com particular carinho, deitando-se com frequência ao seu lado e ajudando-a a se limpar, coisa que para ela era cada vez mais difíicil.
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Além do Lucas, Pipoca adorava Mamãe, seu bípede predileto. Assim que lhe ouvia a voz, saía de onde estivesse, esperava que se sentasse e pulava no seu colo. Com um detalhe: Pipoca quase nunca sentava ou deitava no colo das pessoas, como fazem os demais gatos coleiros: ficava em pé, o que não era propriamente confortável para ninguém -- mas ela tinha o seu jeito de fazer as coisas, e pronto.
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Pips era um gato com truque, e tinha orgulho disso. Não sei como aconteceu, mas um dia descobri que, se a gente dissesse "Pipoca, cai", ela caía. Em recompensa pelo show, ganhava uma dose extra de carinho. "Cair", portanto, virou sinônimo para "carinho" -- e funcionava em mão dupla. Às vezes eu nem precisava dizer nada para que ela "caísse" na minha frente (mais ou menos como o Tiziu faz, quando percebe que trocamos de roupa para sair; acho que aprendeu com ela).
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Durante todos esses anos, a primeira coisa que eu via, ao acordar, era a carinha dela, vesga, vesga, colada no meu focinho. Não sei como adivinhava que eu ia abrir os olhos; mas o fato é que lá estava assim que os abria, sempre, conferindo, com a seriedade que lhe era peculiar, se eu estava mesmo acordando nos conformes. Às vezes eu sentia uns bigodes me roçando o nariz e sabia, por isso, que já tinha acordado, embora ainda me achasse dormindo.
Tem sido difícil acordar sem certeza desde que ela foi embora.
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Era minha intenção, já há algum tempo, dar notícias da Famiglia Gatto; só não esperava que fossem tão tristes. Ao longo do ano, recebi emails perguntando da turma, em geral, e do Tiziu e da Matilda, em particular. Para os que não se lembram, Tiziu e Matilda são os filhotes abandonados que adotei no último dia de 2009. Os dois estão bem, e muito diferentes um do outro.
Matilda é miudinha e atlética; Tiziu é grande e gordo. Muito gordo! Os dois são mais uma prova (como se nós ainda precisássemos de provas) de que volume tem mais a ver com DNA do que com educação: ambos têm a mesma idade, vivem na mesma casa e comem a mesma ração.
Felizmente para o Tiziu, o que se aplica a bípedes não vale para quadrúpedes, e todos que o conhecem acham o seu perfil de baiacu estufado um sinal de grande beleza:
-- Que coisa linda! – exclamam as visitas. -- Como é gordo e bonito!
Tiziu fica feliz e envaidecido. Tem razão em se sentir elogiado, assim como as visitas têm razão em louvá-lo: é mesmo uma beleza, com o típico pelo de veludo dos pretinhos. A sorte é que não deixa que os elogios lhe subam à cabeça, e mantem-se doce e humilde -- na medida, é claro, em que se pode aplicar este adjetivo, humilde, à sua espécie. Tem interesse por todos os tipos de pessoa, das maiores, como o Allecx, seu veterinário, com quase dois metros de altura, às menores, como o Fábio e a Nina, que já aprenderam a andar e acham a coisa mais divertida correr atrás dos gatos.
Matilda, ao contrário, contempla as pessoas a uma distância segura. Não é nem tímida nem arisca; apenas prefere conferir os recém-chegados antes de se aproximar para trocar idéias. Espécie de Kate Moss felina, não come nada além de ração seca. Detesta frango, odeia carne, tem nojo de peixe. Às vezes, por especial favor, belisca um pedacinho de biscoito Maria: apenas uma das suas esquisitices. Fala sozinha e resmunga quando senta, quando levanta, quando pula pro alto ou quando vem lá de cima, se faz sol, se não faz, se chego ou saio. Detesta barulho, e ataca o iPad se tenho a ousadia de deixar o volume ligado. Resultado: pela primeira vez na vida sou obrigada a usar headphones dentro de casa.
Não me queixo.
Manda quem pode, obedece quem tem juízo.
(O Globo, Segundo Caderno, 6.1.2011)
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