20.1.11

Pois é...




O sítio fica logo depois de Conselheiro Paulino. A vista dá para um vale e, em frente, mas bem longe, uma outra montanha. Quando nos mudamos, havia uma linha de estrada de ferro que cortava essa montanha e, volta e meia, via-se (e ouvia-se) passar um trem. Tirando isso, verde por toda a parte, e uma única casinha isolada.

Um dia, quando o Pois é ainda estava em construção, os moradores dessa casa lá longe vieram num jipe inspecionar a obra e descobrir quem eram os novos “vizinhos”.  Aposto que, quando viram os primeiros sinais de atividade do lado de cá, pensaram “There goes the neighbourhood!” – sim, eram ingleses, chamavam-se Mumford e, para grande alívio de ambas partes, as famílias deram-se às mil maravilhas. Não que estivéssemos propriamente tropeçando uns nos outros, mas para eles, que passaram a vida profissional numa ilhota perdida onde se fazia a conexão de cabos da Western Telegraph Company, outra casa na Mata Atlântica devia corresponder a uma terrível invasão de privacidade.

Quando se fala em Friburgo, fala-se sempre nos suíços, mas nós estavamos cercados de ingleses. Os vizinhos do lado, cujo terreno vinha até o nosso (mas cuja casa nem se via, e ficava a uma boa caminhada), chamavam-se Smith. Eram pai, filha, muitas garrafas de gin e grandes doses de amizade. Mr. Smith, de ombros largos, sempre nos saudava erguendo os braços para o céu. Até hoje, quando penso nele, me lembro de uma forma de pudim que tínhamos na época, mais larga em cima do que embaixo, com dois braços que se abaixavam para prender a tampa, e se levantavam para abri-la. Coisa de criança.

* * *

Os Mumford eram velhinhos, e não viveram para ver a degradação da região. O trem deixou de ir e vir e, aos poucos, a floresta foi posta abaixo. Em seu lugar, surgiram casas, casas e mais casas. Construídas de qualquer jeito, a maioria, e feias, muito feias, como costumam ser as casas de baixa classe média brasileiras. Nosso país, que teve as casas mais lindas desde o período colonial, perdeu, em algum momento do século passado, o bonde da estética. No caso, nem se pode alegar falta de recursos, já que, com o mesmo dinheiro que se gasta para construir uma casa feia, se pode construir uma casa bonita. O que é preciso acrescentar: um tanto de capricho, um gosto pela beleza, um olho cultivado.  Por outro lado, onde é que o brasileiro médio vai cultivar o olho? Nos horrores da Avenida Atlântica? Em São Paulo? Na Barra da Tijuca?

* * *

Não me lembro mais como se chegava no lado dos Mumford, mas com certeza era pela outra margem do rio Bengala. Quando eles ainda eram vivos e a floresta mais ou menos intacta, o rio seguia seu rumo solitário, com a estrada para Conselheiro (e Bom Jardim, e mais adiante Sumidouro) ao lado. Muito espaço vazio e, a seis quilômetros de Friburgo, a nossa aldeia miúda, de poucas casas e comércio precário.


Um dia alguém construiu um barraco literalmente pendurado no rio; logo apareceu outro barraco, e outro e outro. Em alguns anos, os barracos deram lugar a casas. Nunca, nesses anos todos, se soube de governo que tivesse tomado qualquer espécie de providência em relação a isso, sendo que alguns conseguiram ser ainda piores do que a péssima média. O ex-prefeito que acaba de morrer soterrado, por exemplo, foi um dos principais responsáveis pela favelização geral.

Ao contrário das áreas elegantes de Mury, Friburgo cresceu, lá para os nossos lados, como costumam crescer as cidades brasileiras: ao Deus dará. Planejamento urbano? Respeito ao meio-ambiente? Cuidados com a população? Ora, por quem sois.

* * *

Esqueci de dizer que, quando eu era criança, o Bengala era um rio limpo, onde se podia pescar. Deu o azar de nascer brasileiro, coitado, e de virar, como viram os nossos rios, um misto de latrina e lata de lixo. Depois nós falamos do Ganges.

* * *

Em julho do ano passado, o Paquistão enfrentou as piores enchentes da sua história, numa tragédia de impacto humano semelhante à tsunami do Oceano Índico. Um quinto da superfície do país ficou submersa, o número de desabrigados contou-se em milhões e ocorreram quase duas mil mortes. O Paquistão é um país pobre e desorganizado (US$ 2.942 per capita versus os nossos US$ 10.200), vítima de governos desastrosos, de movimentos terroristas e de um permanente confronto com a Índia; seus índices de corrupção são ainda piores do que os nossos, se é que isso é possível. Mas, na contabilidade macabra da falta de planejamento e do descaso das autoridades, eles perderam relativamente menos gente do que nós.

* * *

Procurei em vão por notícias recentes sobre os desabrigados do Paquistão. Deixaram de ser interessantes há tempos, assim como os desabrigados de Niterói do ano passado. Daqui a algumas semanas a região serrana sairá das manchetes; os sobreviventes tentarão, como os que vieram antes deles, reconstruir sozinhos os seus lares e as suas cidades, à sombra das promessas descumpridas, longe dos holofotes da mídia.


Quanto aos sucessivos governadores e prefeitos responsáveis pela tragédia, os demagogos que nada fizeram e tudo permitiram, bem, esses continuarão levando as suas vidas safadas de sempre, correndo, entre uma viagem e outra, atrás de aposentadorias obscenas e benesses vitalícias.


(O Globo, Segundo Caderno, 20.01.2011) 

Nenhum comentário: