10.6.10

Vida em quatro rodas



Não tenho carro há muitos anos, e sou feliz. Foi assim: um dia, marquei consulta num médico logo ali na Visconde de Pirajá, a cinco minutos de casa. Quinze minutos antes, peguei o carro, e passei os trinta minutos seguintes procurando vaga. Liguei para o consultório, confirmei que a consulta ainda existia apesar do atraso, voltei para casa, parei o carro na garagem e peguei um taxi. Cinco minutos depois estava lá. Como, àquela altura, alguém já entrara na minha frente, tive os próximos quarenta minutos para refletir sobre o atraso de vida representado pelo carro.

Vendi-o no dia seguinte, para desespero da Bia, que ainda morava comigo e gostava da liberdade de ir e vir que ele oferecia. Tentei argumentar que, tão importante quanto a liberdade de ir e vir, era a possibilidade de permanecer, mas há momentos em que a filosofia não resolve nada, e aquele era um deles.

Depois, as coisas se ajeitaram. Passei a usar bicicleta para perto e taxi para longe, nunca mais me preocupei com multas, IPVA, troca de óleo e pneu, e dizem os economistas que, na ponta do lápis, estou gastando muito menos, apesar do preço do taxi. Nunca cheguei a fazer essa conta, que implica uma sofisticação matemática que não alcanço (por exemplo: quanto renderia o dinheiro do carro se fosse aplicado?), mas a impressão que eu tenho é que, elas por elas, os gastos mensais dão mais ou menos na mesma.

* * *

Seria hipocrisia dizer que nunca mais senti falta de carro. Sinto sim. Não para as coisinhas miúdas, ou para o vaivém do dia-a-dia; mas para uma ou outra viagem e, sobretudo, para as pequenas aventuras urbanas, como ir à Pedra de Guaratiba só pelo passeio, ou atravessar a ponte para dar umas voltas sem destino por Niterói.

A vida fica mais perto sem carro. Ir ao cinema na Barra deixou de ser uma alternativa, o Fashion Mall passou a ser longe demais, nunca mais comi na Tia Palmira, no Adegão Português ou no Rei do Bacalhau. Por outro lado, há mais restaurantes e mais lojas na vizinhança do que eu consigo freqüentar, e ir ao cinema na Barra não chega a ser programa de primeira necessidade.

* * *

Pensei nisso tudo porque, no domingo, fui com amigos passear de carro – aquela coisa antiga que se fazia quando eu era criança, quando ainda não existia trânsito e a violência não era parte do menu da cidade. Fomos ver o mar, que estava de ressaca. Saimos do Leblon e só não fomos até Grumari porque a estrada está interrompida desde as últimas chuvas, quando rolaram umas pedras por lá. Ventava, fazia frio e a orla estava quase vazia. Foi lindo e, por alguns momentos, até fiquei com vontade de ter carro novamente.

* * *

Falei nos passeios de carro que fazíamos quando eu era criança como se isso fosse a coisa mais comum do mundo, mas não era. Nunca tivemos carro. Uma vez meu tio Américo, que tinha espírito aventureiro, comprou um Morris, o primeiro carro da família. Foi um alvoroço. Às vezes, num que noutro fim-de-semana, nos reuníamos para, justamente, passear de carro. Era uma ocasião especial, combinada de véspera.

É provável que eu esteja sendo completamente injusta tanto com o tio Américo quanto com o Morris, mas o fato é que não tenho nenhuma lembrança da intrépida viatura em movimento. Em compensação, guardo bem a memória de vários enguiços pitorescos, e de um monte de adultos contrafeitos parados ao lado do carro, esperando o socorro chegar.

* * *

Nossa intimidade com automóveis começou (e terminou) nos Estados Unidos, quando meu Pai foi convidado a dar aulas na Universidade da Flórida, em Gainesville: uma típica cidadezinha americana, onde a vida sem carro é uma impossibilidade. Alguém ia ter que dirigir na casa – e sobrou, é claro, para Mamãe, que aprendeu em tempo recorde.

Logo tínhamos um Rambler Classic, e com ele exploramos uma Flórida ainda muito simpática, quase caseira, sem os excessos turísticos que a Disney traria depois. Ao voltarmos para o Brasil, nos despedimos do nosso amigo de quatro rodas com saudade e tristeza, e voltamos para as nossas linhas de ônibus habituais.

Mas é claro que esta não seria uma história da nossa família se ficasse só por isso. Tenho certeza de que a primeira saída noturna com o Rambler não se transformou em desastre porque nosso anjo da guarda ficou tão perplexo com o que viu que chamou reforços. Não ocorreu a nenhum dos professores da auto-escola explicar à Mamãe que carros tinham farol: como podiam imaginar que alguém não soubesse disso? Tampouco ocorreu a ela perguntar como se dirigia à noite, já que as aulas eram de dia.

De modo que lá fomos nós, com uma lanterna acessa dentro do carro, tentando iluminar o caminho. Papai se prontificou a pilotar a lanterna enquanto Mamãe pilotava o carro, mas como ele não conseguia iluminar o que ela queria ver, ela acabou, sabe-se lá como, acumulando funções. Pois fomos aonde devíamos ir, e voltamos sãos e salvos.

O mais estranho é que nenhum de nós – nem Papai, nem Mamãe, nem o Nonno, muito menos a Laura ou eu – nos lembramos de que, mesmo no Brasil, todos os carros e ônibus tinham utilíssimas lanternas embutidas na carroceria.

No dia seguinte, quando um amigo passou em casa para saber como estávamos nos virando, Mamãe se queixou amargamente do horror que era dirigir à noite.

-- Mas os faróis não estão funcionando?

-- Faróis?

E pronto, fez-se a luz.

Depois a gente se queixa de que a vida não é fácil.


(O Globo, Segundo Caderno, 10.6.2010)

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