24.6.10

Crime e castigo



O cheiro não era ruim. Queimado de roça é sempre bom, natural, lembra fogueira, lareira acessa e fogão de lenha, ao contrário dos vários queimados urbanos, que exalam fedores químicos e pestilentos. Mas, é claro, não estavamos na roça. Havia alguma coisa errada, e bastou chegar à janela para perceber o que era: o outro lado da Lagoa estava em chamas. O que a gente sente quando vê a paisagem que mais ama no mundo pegando fogo? Tristeza, desespero, impotência.

Não há nada que se possa fazer diante de um incêndio daquelas proporções. Nada, nada, nada -- a não ser assistir à destruição.

Não consegui desgrudar da janela durante toda a madrugada. Algumas vezes tentei ir dormir, e me tranquei no quarto fazendo força para esquecer o cheiro da fumaça. Impossível ficar deitada. Logo estava de volta à sala, conferindo em que direção iam as chamas e torcendo para que aquilo acabasse logo.

Não havia mais trânsito e o único barulho que se ouvia era o das árvores ardendo. A fuligem entrava em casa a despeito das janelas fechadas, e logo estava por toda a parte, dos lençóis ao mouse-pad. No chão da área de serviço encontrei uma peninha meio carbonizada, e caí no choro, pensando nos pássaros mortos.

* * *

Os bombeiros que apagaram o fogo no Morro dos Cabritos passaram o domingo trabalhando. Desciam com os helicópteros até a Lagoa, paravam no ar, recolhiam a água numas caçambas arredondadas, depois se afastavam devagar e iam até os focos de incêndio, onde despejavam a carga. Às vezes molhavam o lado do morro que dá para a Lagoa, e voltavam logo; outras tomavam o rumo do Corte para os lados de Copacabana, e custavam a aparecer de novo.

Passei horas na janela admirando a sua perícia e perdi a conta do número de vezes em que repetiram o procedimento. Enquanto o resto da cidade ficava de olho na televisão vendo o jogo do Brasil, eles davam um solitário show de competência e dedicação. São os meus heróis.

* * *

Não tenho mais paciência com a tolerância politicamente correta que aceita qualquer estupidez que se apresente como “tradição cultural”. É como se a humanidade não evoluísse ou, pior, como se toda ou qualquer evolução fosse algo suspeito e forçosamente inferior às genuínas manifestações das nossas almas primitivas.

Agora mesmo acompanhamos a novela das vuvuzelas da Copa, que acabaram não sendo proibidas na África do Sul porque são uma “tradição cultural”. E daí se a trilha sonora dos estádios perdeu em graça e em pluralidade, e daí se quem não sopra aquelas porcarias não suporta o seu barulho? Tasque-se o carimbo de “tradição cultural” na pior imbecilidade e pronto, ela fica imediatamente acima do bem e do mal.

Baloeiros se fazem de vítimas e posam de heróis na internet sob a alegação de que estão mantendo uma “tradição cultural”, enquanto florestas inteiras são queimadas no Nordeste -- porque as fogueiras de São João são, igualmente, uma “tradição cultural”. E daí que as matas peguem fogo, que plantas e bichos desapareçam, que a devastação seja geral? A lei proíbe balões? Proíbe fogueiras em áreas urbanas? Dane-se a lei.

* * *

Claro que o prejuízo causado por uma vuvuzela ou por todo um enxame de vuvuzelas não se compara à destruição que pode vir no rastro de um balão ou de uma fogueira, mas, ainda que diferentes, essas pragas sobrevivem graças ao mesmo fenômeno. Simplesmente não temos mais coragem de apontar para alguma coisa e dizer que está errada. Touradas? “Tradição cultural”. Farra do boi? “Tradição cultural”. Trote em calouros? “Tradição cultural”.

Ora, sacrificar crianças para aplacar a fúria dos deuses também foi, durante milênios, uma “tradição cultural”. Castrar meninos de voz bonita, então, nem se fala – não houve grande compositor, até o Século XIX, que não compusesse árias para os castrati. Pode existir “tradição cultural” mais tradicional, ou mais cultural?
Mas suspeito que, se tivessem sobrevivido até hoje, mesmo essas práticas infames teriam o apoio de incontáveis defensores, acovardados pela noção de que tudo no mundo se justifica.

* * *

Nossa espécie evoluiu consideravelmente desde que saímos das cavernas, e esta evolução se mede, entre outras coisas, pela afinação da sensibilidade coletiva, muitas vezes imposta na marra. Não adianta combater o egoísmo e a insensatez com penas leves e multas irrisórias.

Comunidades e websites mantidos por baloeiros, por exemplo, têm que ser tão energicamente caçados quanto quaisquer outros sites de promoção de atividades criminosas.

Soltar balão não é um crime menor, não é uma bobagem que se resolva com meia dúzia de cestas básicas. Enquanto for tão simples se safar dessa, os cretinos responsáveis pela destruição de tanta beleza e de tantas vidas vão continuar soltando balões e se achando artistas perseguidos. E, sobretudo, vão continuar rindo da nossa sociedade pusilânime, cada vez mais incapaz de se defender.

* * *

Mudando de assunto: se você, como eu, morre de saudades das crônicas de Copa do Mundo do Artur Xexéo, seus problemas acabaram. Chegou às livrarias o livro mais gostoso da temporada, “O torcedor acidental”, em que ele conta histórias das suas aventuras nos bastidores das quatro Copas que acompanhou. Diversão garantida!


(O Globo, Segundo Caderno, 24.6.2010)

Nenhum comentário: