16.6.10

A dura vida da bailarina



A Bailarina de Vermelho morou durante muito tempo numa tela de Dégas, e acabou amiga de uma moça que morava ali perto, a Mona Lisa. Isso aconteceu, naturalmente, antes da transferência dos impressionistas do Louvre para o Museu D’Orsay. Um dia, porém, ela cansou de viver naquele espaço reduzido e foi embora, deixando no quadro, em primeiro plano, uma cadeira vazia. Depois disso, e antes também, pintou, bordou e namorou meio mundo: teve casos com Picasso, John Cage, van Gogh – limitações de tempo e de espaço, essas bobagens burguesas, não fazem parte do seu show. Foi vista na Ásia, nos Estados Unidos, na França, na Rússia. Rodou tanto por aí que não sabe mais se é francesa, russa ou brasileira. Onde quer que houvesse uma novidade ou um movimento de vanguarda acontecendo, lá estava ela, metendo o bedelho. Até que sumiu de vez, depois de se acabar num carnaval carioca ao lado de um misterioso folião azul.

“A verdadeira história da Bailarina de Vermelho”, de Alessandra Colasanti e Samir Abujamra, nem tenta descobrir que fim levou a encarnada personagem. Para isso seria preciso, no mínimo, um longa-metragem. O filme contenta-se, assim, em dar sugestões da sua trajetória. Passa por três continentes, tem trechos (falsos) de filmes antigos, vídeos (fajutos) do You Tube e cerca de 70 depoimentos (verdadeiros, ou quase isso) em mais de dez línguas -- tudo em 15 minutos cravados. É um verdadeiro épico de bolso.

A idéia foi de Alessandra, Leca para os íntimos, atriz, diretora, performer e alter ego da Bailarina de Vermelho desde 2006 (há quem diga que é o contrário; há divergências): tudo começou com a peça "Anticlássico" e continuou com incontáveis performances. A bailarina, hoje grande personagem carioca, já tem até um bloco de carnaval, para o qual a própria Leca confecciona tutus.

-- Nós queríamos fazer alguma coisa juntos há muito tempo, -- diz Samir, cineasta (dirigiu o longa "O paraíba", exibido fora de competição no último Festival do Rio). – A Leca descobriu o edital do Rumos Itaú Cultural, nós nos inscrevemos na categoria de filmes e vídeos experimentais de até 15 minutos, ganhamos o prêmio e, com o dinheiro, resolvemos ir a Paris e a Nova Iorque para ampliar a história.

Os dois viajaram com uma câmera na mão e várias idéias na cabeça. A câmera, por sinal, era tão pouco convencional quanto as idéias: uma Canon D7 que, embora filme em Full HD, é, essencialmente, uma câmera fotográfica. Em Paris contaram com a ajuda de Cécile Dano, e em Nova Iorque com Ana Bial. Elas completaram a equipe formada por Nani Escobar (assistência de direção) e pela produtora Vania Catani, da Bananeira Filmes. Cécile e Ana foram assistentes de direção, guias e pontes com atores locais. Além disso, carregaram muitos casacos para Alessandra, que enfrentou o rigor do inverno no Hemisfério Norte vestida com o ligeiríssimo tutu da Bailarina de Vermelho:

-- A gente não sabia onde ou quando ia encontrar uma locação legal, de modo que eu saía de manhã de bailarina e assim ficava até o fim da tarde, -- diz ela. -- Quando encontrávamos um cantinho bom, eu retocava a maquiagem, tirava o casaco, filmava um pouco, pulava de novo dentro do casaco...

Os trajes incongruentes chamaram a atenção dos seguranças do Centro Pompidou, em Paris, que levaram a turma toda para uma salinha fechada, preocupadíssimos com a possibilidade de seu precioso centro cultural estar servindo de cenário para um filme pornô. Esclarecida a questão, deixaram todo mundo ir embora, não sem antes soltar um “Madame, vous êtes très légère!” para Alessandra, “a senhora está com uma roupinha leve demais”. Ué, e ela não sabia?!

Tirando esse episódio, que no fim acabou bem e entrou para o folclore do filme, Samir e Leca ficaram encantados com a receptividade que encontraram. Como todo fake doc de respeito, seu filme mistura realidade com ficção. Há alguns atores em papéis específicos, mas a maior parte dos depoimentos sobre a Bailarina de Vermelho é dada por pessoas que aparecem com suas verdadeiras identidades, do peixeiro do Mali a Tatiana Leskova.

-- Nós contávamos um pouquinho do filme e as pessoas logo ficavam entusiasmadas, colaborando com o maior prazer – lembra Samir. -- A única pessoa que se recusou a dar um depoimento foi um açougueiro muçulmano em Paris, que disse que não podia mentir.

O resto entrou feliz no faz de conta. Ainda em Paris, era preciso encontrar alguém que parecesse ter alguma ligação com o famosíssimo 27 rue de Fleurus. A Bailarina de Vermelho, como é sabido, freqüentou muito Gertrude Stein, que morava lá. Pois não é que a dois passos do célebre endereço havia um senhor perfeito, sentado numa cadeira, pensando na vida?

-- Era um tipo vestido com muito apuro, com um cachecol vermelho no pescoço. Um homem que já foi elegante, e luta para manter a pose. Meio melancólico. De certa forma, poderia ser uma metáfora para a Europa, -- diz Samir. – Nós nos aproximamos, contamos o que estávamos fazendo, perguntamos se ele toparia dar um dos depoimentos. Ele topou na hora, todo feliz. Depois nos pediu um maço de cigarros.

Cécile e os atores franceses ficaram muito impressionados com a tranqüilidade com que Samir e Alessandra interagiam com as pessoas na rua. Na França tudo é mais certinho, mais formal, e, em tese, desconhecidos só se transformam em conhecidos depois de apresentados por conhecidos em comum. A descontração brasileira que corta caminhos fez sucesso.

“A verdadeira história da Bailarina de Vermelho” chega às telas e ao You Tube em setembro. Antes disso, e apesar de desaparecida, a Bailarina volta aos palcos em julho, no Sergio Porto, com “Anticlássico”.

Ah, sim: eu também faço uma ponta na “Verdadeira história”. Tenho uma fala inteira. Digo: “Nunca vi nada igual desde o aparecimento da internet. Ela quebrou todos os recordes do You Tube.” O depoimento é rigorosamente verdadeiro, ou quase. Eu sou eu mesma, e estou na redação. Repeti o que me pediram para dizer, mas quem é que liga para esses detalhes? Também não trabalho mais na redação, mas ninguém é perfeito.


(O Globo, Segundo Caderno, 16.6.2010)

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