2.2.05




Brunetti, Sherlock Holmes sem cachimbo

A cena começa a se tornar comum em Veneza. Cada vez mais turistas, sobretudo europeus, querem saber onde fica a chefia da polícia. Nada lhes foi roubado, nem sofreram qualquer tipo de violência; apenas querem ver onde trabalha o comissário Guido Brunetti, que conhecem tão bem, e ter uma idéia mais concreta do mundo em que vive. O fato de Brunetti ser um personagem de ficção é tão irrelevante para eles quanto a existência de Sherlock Holmes para quem vai atrás de suas pegadas em Baker Street mas, exceto pelo fato de serem ambos detetives, Brunetti e Holmes não podiam ser mais diferentes.

Não há nada de excêntrico no comissário, cujo maior charme é ser, justamente, um homem comum, o que pode ser constatado em "Morte em terra estrangeira" (360 páginas, R$ 37,50), que a Cia das Letras está enviando às livrarias. Perto da meia idade, pai de filhos adolescentes, amante da boa cozinha e dos bons vinhos, Brunetti é um zeloso funcionário público, que luta para manter a integridade e a sanidade mental num mundo cada vez mais vazio e corrupto. Resignado com o fato de que não vai conseguir mudá-lo, encontra conforto na companhia da mulher, Paola, professora universitária, que luta, por sua vez, contra um sistema de ensino cheio de falhas, professores despreparados e alunos desinteressados.

Certos problemas que enfrentam são tão familiares que, se os dois não fossem italianos, poderiam ser cariocas; e, se não fossem criaturas de ficção, poderiam ser Donna Leon, a autora da série estrelada pelo comissário. Já a própria Donna Leon, americana radicada na Itália desde 1981, seria irresistível como personagem se, por acaso, não existisse de verdade. Nascida nos Estados Unidos há 63 anos, ela passou um bom tempo correndo o mundo, sobrevivendo ora como guia de turismo, ora como redatora de publicidade, ora como professora de inglês. Viveu na Suíça, na China, na Inglaterra, no Irã...

A aventura acabou na Arábia Saudita. É claro que uma mulher livre e independente, acostumada a pensar com a própria cabeça, não podia dar certo naquele país medieval; e não deu mesmo. Tanto que chegou à conclusão de que estava na hora de criar raízes. Para quem conhece Veneza e já leu Donna Leon, sua escolha de pouso faz todo o sentido: a elegância coerente e sofisticada que a escritora cultiva combina com a cidade, que faz o possível e o impossível para manter o mundo lá fora.

Autora não tem televisão e não vai ao cinema

Ela não tem televisão e não vai ao cinema, mas é uma leitora voraz de livros e jornais e promove a ópera, sobretudo barroca, com a energia e a tenacidade de quem defende uma espécie em extinção. Gosta de Jane Austen e de Henry James, das cantatas de Bach, dos oratórios de Haendel e de gente de espírito; detesta livros de auto-ajuda, desperdício, celulares, turismo de massa e livros sobre crimes de verdade. Como não gostar de alguém assim?!

O comissário Brunetti e Paola dividem, entre si, muitas dessas preferências. Sua vida doméstica é civilizada e pacífica, e em muitos diálogos do casal se podem encontrar as opiniões de Donna Leon sobre a vida como ela é. Aliás, uma das características mais curiosas dos seus livros é que, paralelamente à trama policial -- que, diga-se, volta e meia quase desaparece de cena -- encontra-se sempre um olhar arguto e sensível sobre os temas do momento.

Donna Leon tem um ótimo senso de humor e opiniões muito bem definidas sobre assuntos delicados, que não se incomoda em manifestar com todas as letras. Os crimes que, em tese, seriam a razão de ser dos romances, são, quase sempre, simples pretextos para a abordagem de questões sociais mal resolvidas.

Brunetti lê pouca coisa além de História

Como a sua criadora, Guido Brunetti não vê televisão. Gosta de ler mas, curiosamente, como quase todos os detetives de ficção, nunca é visto com um policial nas mãos.

-- Brunetti lê pouca coisa além de História, -- explica Donna Leon, respondendo ao meu e-mail. -- Mas, se ele lesse policiais, acho que leria Sciacia.

E ela, lê?

-- Li muitos quando estava na universidade e quando era mais jovem. Depois parei por um tempo, e voltei a lê-los quando passei a escrever resenhas para o "London Sunday Times". Hoje leio muito poucos: Ruth Rendell, Frances Fyfield, Martin Cruz Smith. Às vezes volto a Chandler ou Ross MacDonald. Meus gostos literários são uma mistura dos gostos de Guido e de Paola. Leio muito História, mas continuo fiel a Jane Austen, Dickens e Henry James.

Mais ou menos na metade da série -- além de "Morte em terra estrangeira", a Cia das Letras só lançou no Brasil mais um dos 13 títulos já existentes, "Morte no Teatro La Fenice" -- entra em cena uma das suas melhores personagens, a signorina Eletra, jovem e elegante secretária do chefe de Brunetti, que esconde por trás do visual de patricinha uma alma feroz de hacker.

É uma delícia acompanhar as suas transgressões, e o sentimento ambivalente do comissário em relação àquela investigação de resultados. Ao contrário de Guido e Paola, porém, a signorina Eletra não tem nada de Donna Leon:

-- Eu uso o computador como uma máquina de escrever -- confessa. -- Quer dizer: uso para escrever e ler cartas e imprimir páginas de texto. Tirando isso, não sei fazer nada. A internet é um mistério para mim, embora eu consiga falar a seu respeito como se a entendesse.

A outra grande personagem dos livros do comissário Brunetti é a sua cidade, uma Veneza quase trivial, cotidiana, com seus problemas e alegrias, e uma massa permanente de turistas que, não raro, acabam com os nervos dos moradores. Na pele do comissário, ela nos mostra como vive a cidade que mal entrevemos dos hotéis, e nos conduz pelos canais e calles mais escondidos, oferecendo, aqui e ali, uma rica e detalhada visão dos interiores das casas e palácios que sempre tivemos vontade de ver.

-- A maioria dos lugares se parece, ainda que vagamente, com lugares que de fato conheço -- diz. -- Alguns dos restaurantes existem de verdade, e uma ou outra loja. Alguns dos objetos do comissário são meus, mas o apartamento dele é bem maior e mais imponente que o meu. A vista dele também é melhor.

Apesar da familiaridade com a cidade, das décadas lá vividas e do italiano fluente (ela também entende o dialeto local) Donna Leon não se considera veneziana:

-- Vou ser sempre estrangeira. Uma estrangeira bem-aceita, mas ainda assim estrangeira.

(O Globo, Segundo Caderno, 2.2.2005)

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