11.2.05



A notícia que dá primeira página

Meu colega e amigo Ascânio Seleme, que fecha a primeira página e que escolheu a foto da Luma para o domingo, publica hoje um artigo a respeito desta escolha. Está lá no site do Globo, mas como precisa registro -- que nem todo mundo tem -- e como a gente discutiu o tema aqui, dou um cut&paste para facilitar:
"O leitor pode muito bem imaginar como os jornalistas constroem a primeira página de um jornal diário. É muito simples. Em primeiro lugar, tem que haver notícia. De posse das principais informações do dia, os editores buscam as mais importantes para compor a capa do jornal. Decididas quais são as que merecem a primeira, deve-se estabelecer uma hierarquia entre elas: qual a principal, aquela que vai virar manchete; qual a imagem mais importante do dia, que repercutirá nas bancas e dará mais uma informação ao leitor; como arranjar as demais notícias de maneira a comportar o conteúdo com impacto, conjunto e graça na página mais nobre do jornal.

Na capa do domingo passado, primeiro dia de desfile das escolas de samba, a manchete só podia ser de carnaval. O GLOBO tinha uma excelente história de carnaval, um relatório que mostrava as contradições entre as notas e os comentários dos jurados das escolas de samba em 2004. E o jornal dispunha também da foto, a foto síntese do carnaval da Sapucaí, que começaria a eletrizar a cidade naquele domingo. Era a foto da Luma de Oliveira, a rainha das rainhas das escolas de samba. Foi Luma quem transformou as rainhas de bateria em instituição do carnaval.

Alguma dúvida? Para nós, os editores, a foto era aquela. Luma parecia uma pin-up, um desenho retocado, sem defeito. Como O GLOBO mantém um ambiente aberto, democrático, onde todos opinam e têm voz, a colunista e editora Cora Rónai, ao saber que estávamos dando a foto da Luma, protestou. Ela julgava um absurdo darmos na capa do domingão uma mulher "mentirosa e manipuladora". Cora concordava que Luma tinha tudo a ver com o carnaval, que era mesmo representante legítima da festa, mas discordava organicamente da sua presença na primeira página do jornal. Argumentou que Luma fora acusada de presenciar o espancamento de um fotógrafo num resort e nada fez para impedir. E quem agia assim com um colega nosso não merecia nossa primeira página.

Contra-argumentamos lembrando a Cora que o assunto em pauta era o carnaval, não a defesa dos jornalistas. Não podemos fazer jornal pensando em defender uma ou outra categoria, mesmo que seja a nossa. Fazemos jornal, não panfleto. Que se Luma mentira, como de fato mentira no episódio daquela falsa gravidez, isso nada tinha a ver com a questão em pauta. A notícia era o carnaval e a Luma era a melhor imagem do carnaval que dispúnhamos.

Cora finalmente insistiu que devíamos dar ouvidos a ela porque falava como "perfeita representante das donas de casa da Zona Sul do Rio". Bom, aí não houve mais o que discutir, caímos na gargalhada, Cora inclusive, e encerramos a conversa.

Já tinha até mesmo me esquecido do assunto quando me surpreendi com a coluna da Cora no Segundo Caderno de ontem. Concordo com ela que voto vencido não é convencido. E é obrigação dela expor idéias, dar opiniões. Para isso Cora tem uma coluna semanal. O que se espera dela é isso mesmo: idéias. Entendi, contudo, que o tom foi um pouco além dos bons modos que pautou nosso debate durante o fechamento daquela edição dominical. Cora disse que ao promovermos Luma estávamos "tripudiando da nossa profissão e apresentando ao leitor uma escala de valores lastimável". Ora, Cora. Atribuo esses termos a um arroubo juvenil. Ela sabe muito bem que os seus colegas jamais tripudiariam da sua profissão nem apresentariam ao leitor valores morais menores.

Se fôssemos negar a Luma a primeira página pelas razões expostas por Cora, teríamos que afugentar da capa outros tantos personagens do nosso cotidiano. Notícia tem que ser publicada. E esse é o principal critério na escolha do que vai para a primeira: ser notícia. E Luma é notícia no carnaval como Romário é no futebol e Bush é no mundo.

O editor pode até não gostar de Luma, Romário e Bush, mas não pode negar a eles espaço no noticiário por razões alheias à notícia. (Ascânio Seleme)"
Fico chateada comigo mesma por ter magoado os colegas, que são, além de jornalistas competentes, pessoas muito queridas. Peço desculpas pela falta de jeito, porque acho que talvez pudesse ter dito o que disse com outras palavras, que não ferissem os seus sentimentos.

Apesar disso, continuo mantendo minha opinião. Não acho que se deva negar espaço a Luma no noticiário, mas definitivamente não vejo por quê homenageá-la com um pôster daquele tamanho na capa.

(De resto, também não vejo por quê dar tanta importância para o Romário, mas isso já é outra história; e do Bush, infelizmente, não temos mesmo como fugir.)

Os rapazes acham graça quando me defino como representante das donas de casa da Zona Sul do Rio, e eu percebo a graça, que está na pitada de exagero; mas, no fundo, este é o meu fio-terra, e é isso, exatamente, que eu sou -- uma carioca de classe média, com a alma e o DNA da minha geração.

Espero nunca perder esta identidade, porque nela está a essência da minha relação com os leitores e leitoras, de quem tanto gosto.

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