Crônica do jovem Hughes, ou das
desvantagens de não morrer aos 30
O que é que Howard Hughes, Che Guevara e James Dean têm em comum? Simples: os três são ícones firmemente arraigados no nosso imaginário. A diferença é que Che e James Dean morreram jovens e logo viraram material para posters e camisetas, ao passo que Hughes, que talvez tivesse condições de lhes fazer companhia nas paredes e no peito de milhões de adolescentes, viveu demais, e morreu velho e maluco. Às vezes, sobreviver no tempo da própria vida prejudica a sobrevivência no tempo rarefeito do inconsciente coletivo; vide, por exemplo, Marilyn Monroe e Brigitte Bardot.Em lugar de cineasta e aviador audaz, Howard Hughes cristalizou-se na eternidade como retrato supremo dos males do capitalismo, primeiro nome que vem à mente quando se repete, pela enésima vez, que dinheiro não traz a felicidade.
Até assistir ao filme de Martin Scorsese, era este o Hughes de que eu tinha notícia: o milionário mau, recluso, obsessivo e paranóico, com medo de micróbios, que não cortava o cabelo e as unhas e não fazia a barba, não saía do quarto nem via a luz do sol.
De repente, eis que surge na tela uma versão radicalmente nova deste homem. Sempre milionário, mas jovem e audacioso, apostando altíssimo nas suas idéias e ideais, um ás da aviação, um revolucionário versado nas manhas da política e da corrupção, capaz de dar a volta num senador sem escrúpulos e num concorrente indigesto, com Jane Russell, Katharine Hepburn e Ava Gardner a tiracolo.
Depois da surpresa inicial de descobrir que, um dia, Howard Hughes também foi jovem, vem a segunda surpresa: Leonardo diCaprio, que nunca me convenceu como ator, está ótimo na sua pele. É bonito demais para o papel, mas este "problema" não chega a afetar a atuação, até porque, na verdade, o esquecido Howard Hughes jovem poderia ser representado por praticamente qualquer ator branco, magro e de bigodinho.
Tarefa consideravelmente mais complicada enfrentam Cate Blanchet, que faz Katharine Hepburn, e Kate Beckinsale, que faz Ava Gardner. Temos referências visuais demais das duas antigas atrizes para que qualquer das duas que as representam consiga ser convincente. Cate, a Blanchet, tem sido mais elogiada do que Kate, a Beckinsale, mas para mim é mais fácil acreditar na sua Ava do que na Kate da Cate.
* * *
O filme, em si, é um Grande Espetáculo: reconstituição minuciosa e primorosa de época, trilha sonora sensacional, profusão de cenas empolgantes. Tudo acentuado um pouco além do realismo, como, digamos, um som ligeiramente acima do normal. A idéia, imagino, é dar ao espectador a sensação de que ele não está assistindo a um filme, mas que está dentro do filme. E não qualquer filme, mas um filme da época em que se passa ?O aviador?.
O efeito é acentuado pelas cores, pelo enquadramento e pelo comportamento dos atores, que poderiam ter saído direto dos anos 40. O único problema é que, ao invés de nos aproximar do filme e dos personagens, este tratamento nos afasta. Seria curioso voltar no tempo e ver como uma platéia de então se sentiria diante do filme; mas hoje, o que deveria ser intimidade acaba se traduzindo em distanciamento e frieza.
Como numa típica fita dos anos 40, também, Scorsese opta por não aborrecer excessivamente o espectador com o lado sombrio de Hughes. Seria impossível contar a sua história sem aludir à loucura, mas tudo termina antes do mergulho final no abismo. O público percebe que ali está um homem com sérios problemas mentais, mas não chega a entrar no terror absoluto da doença. Afinal, pela estética em tela, está no cinema para se divertir, não para sofrer.
É claro que ?O aviador? não tem este nome à toa. Para quem gosta de aviões históricos, poucos filmes se comparam a este. As cenas de vôo são longas e magníficas. Na mais romântica, Hughes sobrevoa Hollywood à noite com Katharine Hepburn; na mais espetacular, cai com o XF-11, levando de roldão um quarteirão inteiro de Beverly Hills.
A quem tiver curiosidade de saber o que aconteceu aos moradores das casas atingidas, informo: morreu um cachorro, mas todos os humanos escaparam. O detalhe, que não está no filme, pode ser encontrado no livro de Charles Higham, que o inspirou.
(O Globo, Segundo Caderno, 13.2.2005)
Nenhum comentário:
Postar um comentário