25.9.03



Gugu viu o gato

Nem a BBC escapa da epidemia de falsificação da notícia


Na segunda-feira, o assunto do dia ainda era o programa do Gugu. Que se discuta a suspensão, eu entendo; mas que alguém tenha se surpreendido com a reportagem falsificada, sinceramente, escapa à minha compreensão. Houve, em algum momento, alguma coisa que não fosse falsa naquele programa — a começar pelo falsificador? Além dos telejornais (e, ainda assim, com ressalvas) há alguma coisa verdadeira na televisão brasileira?

Se há, ainda não vi — não tive essa sorte. Só vejo uma programação cada vez mais apelativa, sem qualquer compromisso com a realidade. A falsificação não é uma exceção. É a sua linguagem preferencial, o idioma natural dos seus personagens grotescos.

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Mas não é só na televisão, e não é só aqui.

Na própria segunda-feira, o site da BBC Brasil trazia notícia veiculada como séria. Um amigo me mandou, apreensivo: “Parasita de gato altera personalidade de humanos, diz pesquisa”. Não tenho a menor confiança em manchetes que terminam com as palavras “diz pesquisa” — pois, em geral, não tenho a menor confiança em 99% das pesquisas. Para ficar apenas num fato da memória recente, basta lembrar aquela que o Tony Blair apresentou à ONU, para provar que o Iraque estava até os dentes com armas de destruição em massa.

Guardei o e-mail dos gatos para ler depois. Mas, em menos de duas horas, 19 pessoas me enviaram links para a BBC. A coisa assumia proporções alarmantes. Fui checar:

“Cientistas estão responsabilizando os gatos por infectar metade da população da Grã-Bretanha com um parasita que pode alterar a personalidade das pessoas. Os dados emergem de pesquisas de universidades britânicas, tchecas e americanas, feitas em torno do Toxoplasma gondii, um protozoário que existe em quase toda a população de felinos.”

Depois dessas 50 palavras, só me ocorreu uma 51ª, inglesa, para casos assim: Bullshit ! Como sabe qualquer pessoa com um mínimo de interesse por gatos, só carregam este protozoário gatos que se alimentam de ratos. Não há hipótese de um gato de apartamento transmitir toxoplasmose. Então, “quase toda a população de felinos” onde, cara-pálida? Pode ir tirando a minha Família Gato daí.

“Os homens infectados, segundo o estudo, tendem a ser mais agressivos, anti-sociais e menos atraentes. As mulheres, por outro lado, se tornam mais desejáveis e divertidas, mas menos confiáveis e possivelmente mais promíscuas.”

O “achado” está levando os cientistas a associar a contaminação endêmica da população de gatos com a cultura de um país — cientistas não perdem uma oportunidade de cientificar. A França, por exemplo, tem mais gatos infectados do que a Grã-Bretanha, “o que explicaria as mulheres francesas serem consideradas mais sensuais do que as britânicas.”

Quer dizer: a atração irresistível da Camila Parker-Bowles, de quem o príncipe Charles queria ser o Tampax, e por quem jogou tudo para o alto, inclusive a princesa Diana, provavelmente vem de um casal de siameses clandestinos que ela mantém em cativeiro.

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Mas, olha aí, o estudo não foi feito por “universidades britânicas, tchecas e americanas”, mas apenas por pesquisadores da universidade Charles, de Praga, que aplicaram questionários a 857 recrutas tchecos.

Qualquer pesquisa de comportamento geral que se baseie num grupo tão específicamente... uh, questionável... nem deve ser questionada. Mas os “cientistas” pesquisadores conseguiram descobrir que, entre esses recrutas, os que eram sorologicamente-positivos à toxoplasmose eram menos criativos e impulsivos, e tinham um QI mais baixo, ora vejam só.

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O “estudo” não passa de uma pensata cheia de termos científicos, não chega a conclusão alguma e — palmas para os pesquisadores tchecos — tem mais pontos de interrogação do que referências bibliográficas.

Abrindo a possibilidade para que, amanhã, com os mesmos dados, outro grupo de cientistas prove exatamente o contrário. Como, por exemplo, que a falsa ciência, amparada pelo mau jornalismo, é capar de fazer com que uma jornalista sensata do outro lado do mundo (eu, who else ?) se sinta obrigada a defender de público a Tati, o Lucas, a Netcat, a Pipoca, a Tutu, o Mosca e a Keaton (na foto).

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Ah, sim — como se pega toxoplasmose? A dra. Heloisa Justen, uma das maiores autoridades brasileiras em gatos, diz que a principal causa da doença na Europa, de onde vieram o “estudo” e a reportagem sensacionalista, é comer carne crua. Gatos não passam nem perto.

Aqui, sim — é comer hortaliças mal lavadas e ter contato direto com fezes de gatos portadores do toxoplasma gondii. Mas por contato direto leia-se ingerir essas fezes — que, aliás, devem estar por ali há pelo menos cinco dias, tempo necessário para que a forma infectante dos protozoários se manifeste.

Enfim. É só para não continuarmos comendo gato por lebre, o que estamos fazendo desde que a imprensa propriamente dita decaiu, a televisão assumiu e BBC e Gugu passaram a ser farinha do mesmo saco.

(O Globo, Segundo Caderno, 25.9.2003)

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